O número de casos envolvendo abuso de crianças e adolescentes no ambiente escolar tem me chamado a atenção. Nesses episódios a que me refiro, os jovens são as vítimas e os algozes. Lemos todos os dias sobre meninas que sofrem agressões sexuais, que têm vídeos e fotos íntimos divulgados (muitas vezes, trata-se de montagens) por vingança (revenge porn), ou são incluídas nas terríveis listas das “dez mais” (as mais vadias, feias, piranhas, fedidas…) que circulam nas redes sociais e no WhatsApp. Tais situações, extremamente traumáticas, podem trazer consequências graves, como bullying, isolamento, depressão e até suicídio. As vítimas, na sua maioria, são as jovens mulheres, muitas ainda na infância. Os agressores são os próprios colegas, namorados, amigos: pessoas de faixa etária próxima e que frequentam os mesmos ambientes que elas.
Fala-se muito da sexualização precoce das garotas. As pessoas criticam suas roupas, maquiagem, modo de dançar. “No meu tempo, brincávamos de boneca. Hoje, as meninas parecem todas umas ‘periguetes’. As ‘novinhas’ já sabem tudo”. Quem nunca ouviu frases semelhantes? E realmente, existe uma hipersexualização das mulheres, principalmente as jovens, na mídia e na sociedade em geral (já falamos do tema aqui neste blog). Mas, pouco se discute a sexualização dos meninos. Os garotos, ainda na infância, aprendem padrões de comportamento dos adultos em relação às mulheres e aos relacionamentos. Homens mais velhos acham normal mostrar fotos de mulheres nuas e pornografia aos meninos, desde muito cedo. Muitos ouvem dos próprios pais (e mães) que as mulheres são todas putas, piranhas, etc…
A mídia também contribui para cristalizar tais comportamentos. Recentemente, o Ministério Público passou a fiscalizar cantores infantis de funk, devido ao conteúdo sexual de seu repertório. Há garotos de até seis (!) anos de idade que são famosos por suas letras pornográficas e machistas. As músicas, que fazem enorme sucesso, diga-se de passagem, falam do sexo com prostitutas, de obrigar meninas a fazer favores sexuais (em troca de drogas), do corpo feminino, enfim, estimulam a tratar as mulheres como simples objetos sexuais. Mas, não é um problema isolado do funk ou do mundo da música. A objetificação do gênero feminino vem de longa data…
Gilberto Freyre, em “Casa Grande & Senzala”, abordou o tema da sexualidade infantil nos tempos coloniais, destacando que a iniciação sexual dos rapazes se dava por volta dos 12 anos. Um dos efeitos visíveis dessa precocidade era a sífilis, que curiosamente não era vista como vergonhosa: o menino exibia com orgulho as marcas deixadas pela doença em seu corpo. Mostrava, assim, que deixara de ser “donzelão”. Os filhos dos senhores de engenho eram ensinados, desde a infância, a usar as mulheres como bem lhes aprouvesse: a iniciação era com escravas, meninos escravos, prostitutas, ou até com galinhas e cabras, como relatou Freyre. O autor ressaltou o caráter passivo daqueles que eram escolhidos para o sexo nessas circunstâncias. O pai estimulava o filho a fazer o que quisesse com sua propriedade – como ele mesmo fazia.
Infelizmente, nos dias atuais, notamos nessa nova geração a permanência desses comportamentos misóginos e violentos. Os meninos reproduzem atitudes que lhes são ensinadas como certas, aceitáveis e até desejáveis. A falta de empatia pelas meninas (que são vistas como inferiores, desprezíveis e vadias), o medo de ser considerado frouxo ou afeminado, a necessidade de ser aceito e admirado pelo grupo, e a natural curiosidade da idade em relação ao sexo, potencializada pelo bombardeio midiático sobre o assunto, formam um ambiente perigoso e propício para todo o tipo de abuso.
Sim, é preciso punir os agressores, sem dúvida. As escolas e instituições de ensino precisam se posicionar com firmeza nesses casos – e não ignorar, como geralmente acontece. Entretanto, para evitar que tais ocorrências continuem a se multiplicar, é necessário que professores, educadores e, principalmente, a família não se furtem em abordar as questões de gênero com as crianças. Estimular a empatia e o respeito pelos outros seres humanos, sejam eles do gênero feminino sejam do masculino, é a maior lição que podemos ensinar aos mais jovens.
Está na hora de dizer NÃO a essa herança patriarcal e escravista que transforma os homens em predadores e as mulheres em presas passivas ou objetos descartáveis. – Texto de Márcia Pinna Raspanti.
“Saturno”, de Goya.
Interessante!
Há alguns anos fiz um trabalho com adolescentes em uma comunidade perto de minha casa, o tema: Sexualidade na Adolescência. E o que vi foi o contrário do retratado no texto.
Eu sou psicodramatista, portanto, trabalhava com ação, através de cenas. Fazia um trabalho em grupo e depois atendia ( sou psicóloga) os meninos e meninas que quisessem conversam comigo em particular.
Esta experiência mostrou uma hipersexualidade das meninas. Elas, nas dramatizações, usavam o corpo tal como é mostrado nos clipes de música. E perguntei a elas: onde vocês aprenderam que mulheres são assim? Elas responderam na TV ( BBB). Os meninos por sua vez sempre fazia cenas românticas, queriam amor e namorar. Elas não! Queriam um “cara com pegada”, adoravam abrir as pernas para qualquer um ( segundo elas mesmas falavam) e achavam os meninos bobos e deles queriam apenas o “pinto”.
Foram inúmeras as demonstrações deste tipo de inversão em relação às gerações anteriores, em que eles queriam apenas sexo, e elas amor.
Esta experiência foi muito marcante. Nas sessões individuais eles queriam namorar a garota, mas não sabiam como fazer isso. E por outro lado, elas queriam caras mais velhos, e que ficavam com dezenas de meninas.
Bom, esta foi a minha experiência numa faixa etária que ia dos 11 aos 15 anos.
Oi, Suely. Acho que existe uma sexualização da infância muito forte. Acho impossível que ela atinja apenas as meninas. Elas realmente são a parte mais visível da situação – e a mais julgada. (há outros textos nesse blog que tratam do assunto). Mas, todos os dias lemos sobre o abuso que ocorre nas escolas e nas comunidades, tendo como principais vítimas as meninas. A internet e a tecnologia potencializam os danos dessa situação. Nessa idade, existe uma grande pressão para que a pessoa se sinta aceita e admirada, e acredito que essa seja uma das razões para vermos crianças imitando comportamentos dos adultos, principalmente em relação ao sexo. Acho que devemos evitar estereótipos e generalizações. Obrigada.