Nem recatadas, nem prostitutas

            Faz tempo que as mulheres estão roubando a cena na política. Mesmo sub-representadas no Congresso e nos partidos, elas dominaram as duas últimas eleições presidenciais, e uma delas foi eleita presidente. Agora, em meio a um conturbado cenário, não se fala de outra coisa, a não ser de duas mulheres que, curiosamente, não tem nenhum cargo ou função pública. Depois da celeuma em torno de uma reportagem muito criticada sobre Marcela Temer, que a classificou como “bela, recatada e do lar”, o novo objeto de exploração da mídia é a figura nada discreta de Milena, casada com o, até então, pouco conhecido ministro do Turismo, Alessandro Teixeira.

            No dia da posse de Teixeira, Milena resolveu fazer uma visita ao seu gabinete e tirou algumas fotos românticas, ao lado do marido, para postar nas redes sociais. De formas exuberantes realçadas por um revelador vestido branco, causou escândalo e muitas reações negativas. Logo, a internet ficou abarrotada de fotos antigas da moça, dos tempos de modelo, em que ela aparecia seminua, sendo que em uma delas está coberta apenas com uma falsa faixa presidencial. A confusão estava armada. O passado da alegre “primeira-dama do Turismo” foi revirado e ela se tornou alvo de revolta e julgamentos severos.

         Na verdade, tanto o estilo de vida de Milena, quanto o de Marcela não interessam a ninguém, muito menos ao nosso blog que não trata de política, nem de fofocas. Mas acho que os dois fatos, e a repercussão que causaram na nossa sociedade, podem nos levar a algumas reflexões interessantes sobre a emancipação feminina e em relação ao tratamento que a mídia dispensa às mulheres. Se de um lado idealiza a dona de casa, a moça discreta de família, de outro, demoniza a mulher ambiciosa, que não tem vergonha de escancarar sua sexualidade. É inegável que existe um retorno tradicionalista no Brasil, e a imprensa está embarcando nessa tendência.

       No caso de Milena, que virou assunto até no horário nobre, no telejornal mais visto no Brasil, acho que a grande questão é linha tênue entre o público e o privado. Nossos políticos têm uma enorme dificuldade em separar os dois, como pudemos observar nas falas dos deputados durante a votação do impeachment. E, por mais apaixonado que seja o casal, nada justifica que o gabinete ministerial se torne cenário para uma coleção de fotos dos pombinhos. É algo simplesmente inadequado, ainda mais considerando a situação atual do país. O que me chocou, entretanto, foram os comentários em relação à moça, que foi chamada de prostituta, sendo ridicularizada e desqualificada de todas as formas. O moralismo em relação à nudez e à sexualidade foram indisfarçáveis.

     Um outro aspecto interessante é que, nos dois casos, os maridos são considerados “homens de sorte”, devido à beleza e juventude de suas mulheres. Voltamos aos tempos das “esposas-troféu”? No artigo “Recônditos do Mundo Feminino”, de Mariana Maluf e Maria Lúcia Mott (História Privada do Brasil, 3), as autoras destacam que a beleza era um fator importante para a mulher casada de classe mais alta, mas a sensualidade, nem tanto.  Nas primeiras décadas do século XX, as mulheres “arcavam com a tarefa de apaziguar a sensualidade do casal. O discurso higienista procurava assegurar os limites entre as mulheres ‘honradas’ e a libertinagem de mulheres de ‘conduta duvidosa’ que desfilavam pelos teatros e cafés da cidade”.

      Ainda hoje, louva-se a beleza discreta e natural de algumas, e desconfia-se da exuberância siliconada de outras. A classificação entre moças ‘direitas’ e depravadas continua valendo para parte dos brasileiros. Cobiçadas e, ao mesmo tempo, hostilizadas, as mulheres sexualmente livres atraem olhares de inveja e desprezo. Mas, vulgares ou recatadas, é preciso ser bela e jovem para estar ao lado de um homem poderoso – mesmo que ele seja bem mais velho ou pouco atraente. A mídia é obcecada por corpos femininos perfeitos. “O terrível é que, de maneira geral, pobres e ricas, bonitas ou feias, as mulheres parecem condenar-se a ser apenas um corpo, o seu corpo”, nos diz Mary del  Priore, em “Corpo a Corpo com a Mulher” (Editora Senac, 2000).

       Vejamos o tratamento dispensado a essas duas mulheres tão diferentes na aparência: Marcela é respeitável, mas suas opiniões não foram ao menos ouvidas na infeliz reportagem; Milena, que foi tratada com desprezo, não se inibiu em opinar sobre assuntos “sérios” e não esconde suas próprias pretensões políticas, porém, foi ridicularizada ao extremo. Não é fácil ser mulher no mundo da política brasileira. Quem exerce o poder é vista como masculinizada ou fraca, quem está ao lado de homens poderosos é tratada como objeto de luxo e ostentação. Será que as mulheres não merecem ser tratadas como mais que “um corpo”?

       Segundo Mary del Priore, isso nos leva a um círculo vicioso, pois, a brasileira continua a construir sua identidade através do olhar do homem: do macho ou do príncipe. “É ele quem escolhe a liberta ou a libertina. As que transformam o corpo apenas num mecanismo de proezas sexuais têm que lidar com consequências, nem sempre desejadas: gravidez, DSTs, solidão quando o corpo não dá mais. Na outra ponta, a tradição não é opressiva. Para muitas, a liberdade sexual é um fardo e elas têm nostalgia da velha linguagem do amor, feita de prudência, tal como viveram seus avós. A pergunta que fica é: quando vamos ser nós mesmas, sem pensar em como ou quanto os homens nos desejam? Sem ter que escolher entre ser santa ou p…?”.

  • Texto de Márcia Pinna Raspanti.

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  1. Wildson Queiroz

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