Namoros: os “sérios” e os outros…

           Segundo o antropólogo Thales de Azevedo, pioneiro nos estudos sobre o namoro entre nós, a modernização das grandes cidades e a maior liberdade de ir e vir entre jovens mudou os hábitos amorosos. O bonde e o elétrico socializaram os namoros. A Praça do Ferreira em Fortaleza, as alamedas de São Paulo, a Rua XV de Novembro em Curitiba, a Rua Chile, em Salvador, a Rua da Praia em Porto Alegre, o largo do Palácio em Florianópolis, a Avenida Rio Branco eram as artérias por onde circulavam milhares de moças e rapazes entre o footing e o flirt. Uns e outros eram alvos das “trepações” isto é, de comentários indiscretos e brejeiros. Passear de um café ao outro, de uma loja chic a outra de uma praça a um jardim era ocasião para um primeiro comércio de olhares, aparentemente casuais, de sorrisos, de gestos significativos. Seria a primeira vez que as moças se expunham deliberadamente, ainda que de modo dissimulado, à conquista tendo em vista o namoro. Nesse exercício, caminhando ao lado de outras jovens, em geral de mãos dadas ou braços dados, a moça interessada em arranjar namorado via diferentes rapazes, avaliava seus tipos, tentava decifrar seus sinais e signos exteriores, comparava-os até decidir-se por um deles e, com o mesmo, estabelecer – quase sempre furtivamente – sem que as companheiras percebessem, uma relação preliminar. Nas cidades do interior, nos domingos após a missa, ia-se “tirar uma linha”, e começar um namoro sério.

            Palavra de muitos significados, no flirt cabiam várias práticas que, no início do século, João do Rio teve a pachorra de classificar;

Há o flirt do bond com contatos misteriosos e frases breves sem olhares. O maior prazer do amor é tocar, é pegar. Há o flirt imperativo que começa por ódio e que acaba no prazer delicioso de duas carnes que se correspondem. Há o flirt passatempo, quando não se tem o que fazer e se espera o outro. Há o flirt casado. Oh! Esse! É possível esperar tudo? Há o flirt solteiro, sem ponto terminal. Há o flirt contínuo, o sujeito que algumas damas trazem como as luvas, sempre opacos, sempre ácidos, sempre tristes. Há o flirt exasperante que alguns chamam branco e toma às vezes a cor da congestão. Há o flirt galanteio: – Como está bonita, hoje! – Acha? – Acho. Há o flirt má-língua, o flirt inteiramente puro, ela e ele admirando a beleza e procurando um meio de senti-la; há o flirt poliglota, em que ele estudou na Áustria, na Suíça, na Inglaterra e ela por lá passou depois de ter freqüentado o Sion. Há o flirt outonal, o último flirt da idade de amar, já sem reflexão, dos quarenta anos loucos de paixão”.

Uma vez, captada atenção, o candidato passava a exibir uma variedade de sinais, por meio dos quais se comunicava, à distância com sua bem amada: flores à lapela do paletó, lenço disposto de maneira convencionada no bolso do peito, movimentos com a bengala; ela respondia com flores e cores diferentes do vestido. Baforar um charutão significava “não te dou bola”; limpar o suor do rosto: “quantos trabalhos me dás”; passar com a ponta da bengala para cima: “estou de ponta contigo”; braço em decúbito : “dor de cotovelo”; coçando o nariz: “lá vem gente”. Botão de rosa com espinho: “temo mas espero”. Lírio: “começo a amar”. A tulipa: “declaro-me”; o mirto: “amo-te”! Chamava-se a esta fase do namoro “estar na chumbação”.

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O próximo passo era um baile, uma festa, onde pudessem se encontrar e mais… Tocar-se. O narrador é Olavo Bilac: “Ele e ela agora dançam juntos, e juntinhos no vão da janela, estão agora continuando a conversa começada durante a dança. Na sala, continua a dança, ou há conversas animadas; e muitas velhas namoradeiras aposentadas, e muitos rapazes invejosos murmuram, olhando o par feliz; “Descaramento! Aquela sirigaita e aquele sujeito não têm vergonha: estão dando sorte à vista de todos!…”. Ele e ela, porém, não escutam essa murmuração malévola, e continuam a conversar, baixinho, num zumzum de besouros. Juramentos, protestos, promessas, entrevistas combinadas, a janela ouve tudo isso discretamente, como uma cúmplice complacente e muda. Daqui a pouco tudo aquilo acabará na igreja, se não houver briga, que atrapalhe os planos do casal de pombinhos , e se o pombo-calçudo não abandonar a rola incauta, deixando-a naquela triste situação” que a faria ameaçar: “- se me esqueceres bebo um copo de ácido fenico”. A este estágio do namoro chamava-se “grelação”.

João do Rio, por sua vez, definia o flerte como um brinquedo torturante, no qual “o homem deseja, mas teme as responsabilidades, a mulher quer, mas recua diante da desilusão”. Enquanto isso, Afrânio Peixoto, no seu romance Esfinge, publicado em 1911, retrata os namoros nas rodas mais aristocráticas, nos quais a excitação residia em não ser descoberto. As trocas de olhares, os meios sorrisos, os ditos irônicos, as declarações, os passeios por matas e ruas desertas – a estória se passa em Petrópolis – as dissimulações diante dos mais velhos e dos abelhudos, as mãos dadas, os beijos roubados, os abraços de despedida: eram aventuras perigosas que davam ao namoro um calor mais intenso do que a aproximação prudente dos namoros comuns.

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A transição do flirt para o namoro propriamente dito não era sempre uma consequência daquele; havia moças que se deliciavam e divertiam simplesmente flertando sucessivamente e até simultaneamente com mais de um rapaz. Aquela passagem, explica Thales de Azevedo, fazia-se a partir de um contato direto, em que o assentimento, nem sempre abertamente manifesto, era deduzido pelo fato de a moça concordar em conversar, permitindo depois, ser acompanhada na rua, marcando, por último, um novo encontro à porta, à janela ou a certa distância da casa. Esse primeiro-passo, às vezes necessitava da ajuda ou da mediação de uma alcoviteira, ou onze-letras – também chamadas de cocada, na Bahia, de pau-de-cabeleira, noutros lugares, de doce-de-pêra, no Rio Grande do Sul – que se empenhavam em facilitar a comunicação, os contatos, os encontros. Uma tia, uma prima ou madrinha podiam ser o contato. O processo podia se acelerar com beijos furtados nas matinês dos cinemas e mais fundos, nos quintais. Mas, beijos furtados, mesmo.

Ariovisto de Almeida Rêgo conta que seu neto suou até conseguir um beijo correspondido no portão da casa da namorada: “Isso não, Antero!”, dizia ela, que resistiu por meses! No seu tempo, beijos só na mão! Gilberto Freyre os provou exclusivamente na boca de moças americanas: “Beijei Helen na boca. Sugando-lhe a boca como se fosse um supersexo”. Aqui, com as conterrâneas, nada…

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Quando o namoro amadurecia e chegava a ser conhecido da família da moça, assumia o caráter de compromisso, condicionado pelo consentimento dos pais. Houve tempo em que, nesta altura, o rapaz tinha que se declarar, exprimindo verbalmente seu amor, a paixão e a intenção de casar-se. Todo um dispositivo de controle se colocava, então, em funcionamento no sentido de preservar a reputação e a honra da moça, representado pela virgindade, bem supremo de troca no matrimônio burguês. Para evitar tentativas eróticas, os passeios eram acompanhados e só duravam até nove horas da noite, limite para voltar para casa. O tiro das nove, disparado num velho forte de Salvador, por exemplo, era um marco para os namorados da cidade se recolher. No caso de defloramento ou gravidez, o “desastre” era punido com casamento imediato ou sentença judicial. Qualquer condescendência com experiências sexuais antes do casamento que tivessem resultado num “passo falso”, numa “queda”, mesmo com o próprio namorado ou noivo reduzia ao mínimo as possibilidades de casamento. Daí a ênfase na pureza da moça, como queria Pedro Calmon:

A convivência no serão de todos os dias revelou-me as qualidades da moça com quem, em 1922, na amurada da Praia do Flamengo, olhando as luzes da Exposição do centenário, trocara o patriótico aperto de mão de Sete de Setembro. Atraiu-me sua formação religiosa, a que as humanidades bem estudadas davam um realce de inteligência e graça, aqueles requisitos de doçura e recato que idealizamos como as virtudes belas da mulher, ligadas a uma sisudez natural, de caráter mais propenso à solidão do que à ostentação, projeto de freira diluído na mocidade”.

Ai, das que não estivessem dentro do tal “projeto de freira”. Sobre este assunto, já anotara Antônio Cândido, que com muito poucas exceções, a mulher que perdia a virgindade ou conseguia manter o sucedido em segredo, e tudo lhe corria bem, só tinha três alternativas: a prostituição discreta se fosse pobre, o celibato ou um casamento arranjado.

  • “Histórias da Gente Brasileira: República 1889-1950 (vol.3). Editora LeYa, 2017.

 

Almeida Júnior

Na época, valorizava-se a pureza da mulher. Imagem: “Moça com livro”, de Almeida Júnior.

 

 

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