Mulheres: passado e presente

Nesta entrevista, Mary del Priore fala sobre a história das mulheres no Brasil, com foco em uma personagem até então relativamente pouco conhecida, a Condessa de Barral. Mais do que amante, o grande amor de D. Pedro II. A historiadora analisa também a situação feminina nos dias atuais.

– Você tem inúmeros livros publicados sobre diversos temas, especialmente sobre a história das mulheres. O que a levou a pesquisar sobre o tema?

A junção de duas oportunidades: um pós-doutoramento na École des Hautes Ètudes em Sciences Sociales, onde conheci Jean-Louis Flandrin, autor de inúmeros estudos sobre a história da sexualidade, dos afetos e da família; e os ricos arquivos brasileiros e portugueses que minha geração começava a desbravar. Em velhos documentos, inúmeras vozes de literatos, pregadores e médicos, nunca antes ouvidas, contavam sobre o passado de nossas avós, e os primeiros estudos sobre a história das mulheres começavam a ser publicados. A ideia estava no ar e eu a abracei.

– Como vê a pesquisa sobre relações de gênero no Brasil?

Sei que na Unicamp, UFF, UFSC e em outros centros acadêmicos continuam ativos com a publicação de revistas, artigos e teses sob a abordagem do gênero. Acho louvável a agenda destes grupos e recorro, sempre que preciso, a autoras como Margareth Rago ou Raquel Sohiet que tanto contribuíram para que estas questões avançassem.

– O que a levou a escrever sobre mulheres, como a Condessa de Barral?

O que determina meu interesse, ao realizar uma biografia, é a possibilidade de, através de um personagem reconstituir todo um momento histórico. Para isso é necessária uma grande riqueza de material documental. De preferência, documentos inéditos – como foi o caso dos conjuntos documentais que encontrei sobre Pedro Augusto de Saxe e Coburgo e de Luísa de Barral. No caso da segunda, tive oportunidade de encontrar dois diários escritos de próprio punho. O primeiro, dava conta de sua juventude, o casamento por amor com Eugênio de Barral e a vida difícil e trabalhosa de uma sinhá, dona de engenho de cana na época da queda do preço do açúcar. Este documento, desmistifica uma série de “lugares comuns” que temos sobre as mulheres de elite, notadamente no que diz respeito a seu alheamento ao mundo do trabalho. Luísa trabalhava, ombro a ombro, com seus escravos, das 5 às 18 horas. Tudo compartilhava, dirigia, orientava, mediava, ngociava. Interessantes, também, são as informações sobre as revoltas de escravos que varreram o Recôncavo e que ela enfrenta, vestida de homem, garrucha às costas. A palavra “medo” não consta de seu vocabulário – o que é um paradoxo quando se pensa a mulher do século XIX, como um ser frágil e desamparado. Ela jamais conjugou o verbo então corrente entre suas contemporâneas: renunciar. Luísa não renunciou a nada e viveu sua vida com excepcional determinação. Sua trajetória nos permite perceber não só a história de uma brasileira excepcional, mas também a história do Império e  de suas elites, ao longo de um século.

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– Como tem sido a receptividade do público à personagem (Condessa de Barral)?

Luísa não foi a amante de D. Pedro II. Amantes são descartáveis. Ela foi a paixão de sua vida junto com os livros e o Brasil. Foram 34 anos de  companheirismo no sentido latino da palavra: eles repartiam o pão. O material e o espiritual. Foram complementares física e intelectualmente. Foi um sentimento que atravessou décadas, alimentado pela distância a espera e a possibilidade de reencontros. Foi um amor que chegou ao outono de suas vidas, com o frescor da primavera. A receptividade é ótima. Trata-se de uma linda história de amor, escondida entre as páginas de história política, social e econômica nos tempos do Império. Mas como já demonstraram tantos historiadores, fora e dentro do Brasil, os sentimentos também merecem uma história

– Existem na história do Brasil, mais especificamente durante o Período Imperial, outras mulheres tão interessantes e que merecem ser conhecidas? Quais?

Esta é uma resposta que devemos procurar nos arquivos: nos públicos e privados. A história do Império ainda tem inúmeras páginas guardadas nos velhos baús de família. Este resgate está por ser feito. O importante é que tais documentos não desapareçam, por menoscabo ou negligência. As lições da Micro-História são justamente as de valorizar o indivíduo como indício de uma nova história social.. Graças a ele ou ela, são possíveis reconstituir redes de relações, de comportamentos, de identidades. A ambição do historiador é a de reconstituir o vivido histórico ou a experiência social  de certo personagem, percebendo as transformações históricas ao nível de seus comportamentos concretos. As trajetórias pessoais, ajudam, assim a entender os processos globais.

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– Como vê a situação de desigualdade e exclusão que as mulheres ainda vivenciam no Brasil apesar de todas as conquistas das últimas décadas? Podemos transformar essa realidade?

É lamentável que tão pouco tenha sido feito pela mulher brasileira, nas últimas décadas, com exceção da lei Maria da Penha. A verdade é que a mulher brasileira precisa de ajuda para mudar – saúde e educação – mas ela também precisa Se mudar! o problema não é na rua. Mas em casa. É lá que elas escondem seus sentimentos masculinizados. Muitas protegem filhos que agridem outras mulheres, não os deixam lavar louça ou arrumar o quarto. “Homem não nasceu para isso”! A idéia é tornar marido e filhos dependentes delas em assuntos domésticos, pois muitas são dependentes financeiras, deles. Outras calam sobre comentários machistas de seus companheiros, incentivam piadas e estereótipos sobre a “burrice” feminina, cultivam cuidadosamente o mito da virilidade. Gostam de se mostrar frágeis, pois acreditam que eles assim se sentem mais potentes, e de ser chamadas de xuxuzinho, docinho ou gostosona, tudo o que seja convite a comer. O título de cachorra é um elogio. Mulher forte? É sapatona! A “Melancia”? Linda! Acreditam que a feminilidade é um estado natural, a ser conservado e que todas as despesas aí investidas, até cirurgias que acabem por desfigurá-las, são um bom negócio.  São coniventes com a propaganda sexista e com a vulgaridade da mídia. Na TV, aceitam temas apelativos e não se incomodam que os mesmos encham a cabeça de suas filhas .

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– Como vê o trabalho e a visibilidade dos movimentos de mulheres no Brasil atualmente?

Tenho vergonha de nossas representantes políticas que deveriam ter agendas exclusivamente voltadas para as mulheres. Há tanto para fazer na área da educação – uma mulher pobre educada pode tirar a família da linha da pobreza -, prevenção de gravidez indesejada, aborto,  violência e equiparação salarial entre gêneros. Elas pouco ou nada fazem. Quanto aos movimentos de mulheres, estes, lamentavelmente só duraram na época do Regime Militar. Neste período, as mulheres lutaram unidas por melhores escolas, creches e condições de trabalho. O individualismo de nossas sociedades pôs um fim a estes projetos, sim. Mas, é bom lembrar, com o consentimento das mulheres. Somos diretamente responsáveis pela situação que construímos em nossa sociedade e pelo que se vê – quase nada – temos feito pouco frente às necessidades.

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