Mulheres “honestas”, mulheres “da rua”…

Na recente – e polêmica – pesquisa publicada pelo Ipea, 34,6% dos entrevistados afirmaram acreditar que existem mulheres “para casar” e outras apenas “para ir para cama”. Infelizmente, parece que as coisas não mudaram tanto em comparação ao passado…

No final do século XIX começam a ocorrer pequenas mudanças na relação homem/mulher. Por força de práticas sociais, certa ideia de casamento que fosse além do rasteiro negócio ou da proteção começou a circular. Podemos observá-la em pequenos artigos, como o publicado no Jornal do Comércio em 1888. O título: Os dez mandamentos da mulher – “1º Amar a vosso marido sobre todas as coisas… 2º Não lhes jureis falso… 3º Preparai-lhe dias de festa… 4º Amai-o mais do que a vosso pai e mãe… 9º Não desejeis mais do que um próximo e que esse seja teu marido…”.

Não faltavam conselhos na imprensa. O mais repetido? A mulher devia ser uma boa dona de casa. Devia aplicar esforços no bom comando de escravos e empregados, e na excelente educação dos filhos, além de conhecer e praticar todos os pontos de bordado. Entre as elites, também cantar e tocar piano. Ela devia ser reservada no comportamento, evitando tanto o riso demasiado quanto os bocejos de tédio. Devia-se, ainda, evitar a entrada de qualquer homem dentro de um quarto de mulher, com exceção de padres e médicos, que não eram considerados homens. Sendo o casamento indissolúvel, devia-se evitar contato com divorciadas e separadas, consideradas maus exemplos. Reforçava-se o medo das “perdidas”: Há coisas que, uma vez perdidas, nunca mais se recuperam: na mulher, a inocência, e, no homem, a confiança nela, martelavam ditados.A fidelidade feminina era a “grande” virtude exigida das mulheres, pois elas tendiam a ser traiçoeiras, como dizia uma quadrinha publicada em outro jornal , em 1892:

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Deus criou o homem e ficou satisfeito

Então criou a mulher e sentiu-se remordido na sua santa consciência

E então disse:

A mulher será vaidosa, inconstante e pérfida

Enganará o homem e o homem será infeliz

Então criou o cão.

Quadrinhas e piadas em jornais preveniam sobre os perigos femininos. No contexto de repressão, não era de surpreender que a duplicidade feminina tenha se tornado um grande tema literário. O século XIX parecia obcecado pela versatilidade dessa criatura complexa, capaz de reunir o melhor e o pior, exatamente como Capitu, a protagonista de Machado de Assis: criaturas que eram anjo e demônio ao mesmo tempo.

Mas era de pequenino que se torcia o pepino, bem dizia, em 1885, dona Ana Ribeiro de Góis Bettencourt, colaboradora do Almanaque de lembranças luso-brasileiro, alarmada com as tendências românticas das novas gerações – principalmente quanto ao fato de meninas fugirem de casa com os namorados –, esclarecendo que convinha aos pais evitar as más influências: o mau teatro; os maus romances; as más leituras – sobretudo os com “certas cenas um pouco desnudadas” e “certos perfis de mulheres altivas e caprichosas […] que podem seduzir a uma jovem inexperiente, levando-a a querer imitar esses tipos inconvenientes na vida real”.

Embora todos os esforços da educação de uma jovem implicassem banir a influência romântica em prol dos bons costumes, e mirassem exclusivamente a união consagrada pela sociedade e a Igreja, o casamento, porém, não era para todas. As moças de classe média, como Capitu, viram-se diante de um mercado matrimonial restrito em finais do século XIX, devido à crise econômica e política. Para as ricas herdeiras, contudo, havia sempre tantos pretendentes quanto as próprias posses.

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Quanto à  vigilância da comunidade sobre a honra da mulher, esta era permanente. Muitas foram denunciadas por cartas anônimas: “Sua ausência tem contribuído para sua desonra. Sua mulher se acha fora de casa. Esteve no hotel Paineiras e agora está na travessa do Paço, número 22, em casa de um açougueiro do mercado. O amante de sua mulher é tal Luiz. É um rapaz moço, magro, baixo, de bigode preto e fino”.

A esposa era a responsável pela felicidade dos cônjuges. E felicidade despida de sensações consideradas desonrosas e inexplicáveis! Afinal, a esposa era um anjo! Que o diga o ilustre republicano Rui Barbosa, em carta à noiva Maria Augusta: “Agora, quem me dera um olhar teu, aquela meiguice do teu sorriso, a doçura da tua submissão aos meus desejos, a afetuosa severidade tão cheia de amor e pureza com que corriges meus erros, aquela bondade angélica em emendar, com um perdão carinhoso e risonho, as minhas faltas?”.

Perante a vontade do pai e do marido, qualquer ideia ou gesto diferente era visto como indisciplina e rebeldia. Cair ou se perder?! Havia uma obsessão pelo hímen. O Código Civil distinguia as que o tinham, “as honestas”, das “desonestas”: “umas dignas da proteção das leis e da severidade do juiz. Tímidas, ingênuas, incautas foram vítimas de atentados contra a sua honra. Mas há outras, corrompidas e ambiciosas que procuram fazer chantagem, especular com a fortuna ou com a posição social do homem, atribuindo-lhe a responsabilidade de uma sedução que não existiu, porque elas propositadamente a provocaram ou uma suposta violência, imaginária, fictícia”, admoestava o grande jurista Viveiros de Castro.

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O Código Penal de 1890 previa a anulação do casamento se o homem constatasse que a mulher já não era mais virgem. As relações sexuais eram consideradas um “direito conjugal” e, por isso, o marido poderia usar de violência para realizá-las. A esposa não poderia se queixar de “estupro”. Só de “sodomia”, crime que equivalia ao de atentado ao pudor. Afinal, as “porcarias” tinham de ser buscadas fora de casa. Na rua.

– Mary del Priore

A Ruiva - Toulouse Lautrec

 

Henri deToulouse-Lautrec retratava as mulheres “da rua”. (“A Ruiva”)

2 Comentários

  1. Rozana
  2. carmem mouzo

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