Mulheres guerreiras

Pertencente ao bestiário sonhado e desejado da Amazônia, a figura das Amazonas tinha também ligações estreitas com as representações alegóricas do Novo Mundo. Seus atributos, arco, flecha e plumas e, por vezes, colares de pérolas reuniam características opostas. Uma espécie de uma mistura de contrários. Símbolo de um continente descrito como estranho e surpreendente, ela representava, todavia, algo que a Europa temia: o mundo de ponta cabeça, a dominação masculina pela mulher, a sociedade matriarcal, a revanche das mulheres contra uma sociedade patriarcal e misógina. Tratava-se de uma feminilidade ameaçadora, guerreira e cruel, extremamente valorizada nos textos e que se fazia acompanhar de ilustrações extremamente graciosas. Um paradoxo!

Tais imagens e estórias participaram à grande controvérsia européia sobre as qualidades do Novo Mundo. Reconhecer a existência das Amazonas era admitir a riqueza e a variedade da América, que muitos liam como bestial e inferior. Curiosamente, era por intermédio destas mulheres dominadoras, capazes de desafiar as leis das sociedades européias, que os partidários do Novo Mundo e de sua diversidade provavam o quão rico de ensinamentos não seria o encontro com os povos estrangeiros. Daí La Condamine não ser condenado, suas idéias não parecerem fabulações e a possibilidade de uma parte de verdade sobre a existência das guerreiras ser repetida por outros cientistas.

Mas das mulheres, não as de lenda, mas as de verdade, mulheres nascidas ao longo do rio, poder-se-ia contar uma mesma história de lutas. Na ausência de seus maridos, tratavam de conservar suas vidas a de seus filhos. Cuidavam, também, de conservar seus bens. Eram filhas de nações extintas ou expulsas pela conquista: xumanas, com lábios e bochechas tatuadas em dupla espiral; tumbiras, de faces negras e lábio enfeitado com chapinha de cecrópia; periatis, marayas e araruas, conhecidas pelos tecidas de plumas que faziam; yamas que quebravam e sugavam os ossos de seus mortos para reviver em si próprias a alma do defunto; muras, cuja audácia e ferocidade eram temidas pelos vizinhos; mesayas, hábeis em preparar banquetes antropofágicos com seus inimigos miranhas; macus, hábeis como gatas em subir nas árvores para obter alimentos; matrilineares munducurus, cujos maridos vinham de diversas aldeias para residir na de suas esposas; e outras tantas mulheres de tantas outras nações que Paul Marcoy observou quando de sua viagem rio abaixo no meio do século Dezenove. Seus corpos já não se cobriam mais com penas ou couros, nem com os desenhos, como os que faziam xarais e guaikurús, mas com panos ou “pampanillas” dados, desde o século Dezessete pelos jesuítas, ou com “galanterias” oferecidas pelo rei de Portugal. Lentamente foram “descidas”, incorporadas ao trabalho na roça, na extração vegetal, em engenhos e engenhocas, levando e trazendo, com seus companheiros, mercadorias de toda a sorte.

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Sua luta foi tanta que, ainda no século XX as Amazonas foram homenageadas, não num livro de viagens, mas numa das maiores obras da literatura brasileira. Em 1928, Macunaíma, de Mário de Andrade colocou, de volta, em cena, a figura da Amazona. Ci, mãe da floresta, tem o seio direito seco e faz parte da tribo de mulheres solitárias que vivem nas praias do lago chamado Espelho da Lua. Como tantos heróis gregos, Macunaíma tem que vencê-la e violá-la para tornar-se o novo imperador da mata virgem. Só o consegue com o auxílio de amigos. Como a própria Amazônia a qual se identifica, Ci é bela, feroz e guerreira. Ela resiste. E por sua riqueza e exuberância, frente à destruição dos homens, ainda hoje, representa o mundo de ponta cabeça. A utopia de um mundo melhor.- Mary del Priore

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A exuberância da floresta amazônica e dos rio Amazonas.

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