Mulheres e esporte: o fim do “sexo frágil”?

No final do século XIX, as mulheres da elite começavam a praticar esportes, como ciclismo e tênis (a equitação já era comum entre as mais abastadas). A nova moda despertou muitas críticas, afinal a o papel da mulher era de mãe e esposa, e seu espaço deveria ser restrito ao lar. Era como se as mulheres se apropriassem de exercícios musculares que sempre haviam sido característicos da natureza masculina. A medicina, entretanto, defendia que a falta de atividade física seria uma das causas da histeria e da melancolia. Era preciso oxigenar as carnes e se alegrar, para dar equilíbrio saudável ao organismo, diziam os médicos e higienistas.

A resistência à presença feminina em eventos esportivos, porém, era mais forte. Nos primeiros Jogos Olímpicos da era moderna, em 1896, as mulheres não podiam competir. O Barão de Coubertain, idealizador da competição, acreditava que elas poderiam participar apenas na entrega dos prêmios aos competidores homens, como nos velhos torneios de cavalaria. A crença na vulnerabilidade biológica e na fragilidade inata deixava as mulheres de fora de muitos eventos desportivos. Com os nervos à flor da pele, fracas e passivas, elas não poderiam se adaptar ao ambiente competitivo dos esportes – acreditava-se na época, com respaldo de estudos supostamente “científicos”.

É interessante notar, no entanto, que a vida da maioria das mulheres no passado não era nem um pouco fácil. Quando os eletrodomésticos ainda estavam distantes do cotidiano doméstico, elas lavavam uma quantidade enorme de roupas (as mais pobres trabalhavam como lavadeiras), limpavam as casas, enceravam o chão, cozinhavam, cuidavam dos filhos e faziam todo o serviço de casa, sem ajuda. Com exceção das donas de casa de classe alta, as mulheres tinham uma dura e estafante rotina. Frágeis? Fracas? A realidade mostrava outro cenário.

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Pouco a pouco, as mulheres foram conquistando seu espaço nos esportes. No Brasil, por exemplo, Maria Lenk (1915-2007) conquistou o primeiro lugar na prova interestadual entre nadadoras do Rio de Janeiro e de São Paulo, realizada na Enseada de Botafogo, em 1931. Um ano depois, ela viajava sem acompanhante, durante um mês, entre 66 atletas homens da delegação brasileira para realizar ser a primeira mulher sul-americana a competir numa Olimpíada. A moça causou espanto entre os brasileiros, apesar de a natação ser vista como um esporte adequado ao corpo feminino. Posteriormente, as mulheres começaram a se destacar também nos esportes considerados tipicamente masculinos, como o atletismo e o futebol. No início da década de 1940, vários times de futebol feminino se formaram nos subúrbios cariocas.

E até hoje, a presença feminina em determinados esportes causa certo desconforto. A mídia e boa parte do público “esnobou” as conquistas recentes da nossa seleção feminina de futebol. O mesmo ocorreu com as mulheres que se sobressaíram nos Jogos Pan-Americanos. Ontem, houve uma luta importante no UFC, envolvendo duas lutadoras de MMA, a americana Ronda Rousey e a brasileira Bethe Correia. A vitória de Ronda foi fulminante. Mas o que me chamou atenção foram os comentários sobre os aspectos físicos das lutadoras e sobre sua sexualidade. Toda vez que uma mulher se destaca em esportes considerados “masculinos”, a pergunta é sempre a mesma: “é sapatão?”. Qual relevância das preferências sexuais de qualquer atleta?? Que eu saiba nenhuma.

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A discussão é antiga. Em 1968, foram criadas regras rigorosas contra o dopping e contra mulheres de “sexo duvidoso” (antes essas atletas tinham que se exibir nuas para uma equipe de especialistas). A imprensa adotava as versões científicas da comprovação da inferioridade feminina e de sua inaptidão para os esportes, aplaudindo as novas normas. Era inaceitável que não se comprovasse o sexo das atletas por um exame “científico”. A homossexualidade feminina, por outro lado, colocava em risco o regime patriarcal predominante, no qual cabia às mulheres papéis sociais considerados hierarquicamente inferiores aos dos homens. Mulheres lésbicas ou com gênero indeterminado eram vistas como ameaça ao equilíbrio social da época. Décadas depois, a questão ainda é delicada. Ficou famoso o episódio envolvendo a judoca brasileira Edinanci Silva. Como ela, várias atletas tiveram sua feminilidade questionada e sua intimidade devassada.

Ainda hoje, certas atividades são consideradas “coisa de homem”. As mulheres que ousam quebrar essas barreiras são vistas com preconceito, e até desprezo. Mesmo assim, artes marciais, boxe e técnicas de defesa pessoal têm atraído o público feminino, que busca uma forma física melhor. Muitas mulheres também querem ser mais fortes fisicamente, querem saber se defender. Reflexo do mundo violento em que vivemos, mas também um novo passo na busca de maior autonomia. Foi-se o tempo em que as quadras, ringues, piscinas e pistas eram territórios exclusivamente masculinos. Esperamos que também chegue o dia em que cada pessoa possa escolher a atividade com que mais se identifique, independentemente de seu gênero ou orientação sexual.- Texto de Márcia Pinna Raspanti.

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