Mulher: animal perigoso

Em sua grande maioria, os médicos portugueses desconheciam as descobertas científicas que começavam a delinear-se pelo restante da Europa. Eles se limitavam a repetir os mestres antigos (Aristóteles, Plínio, Galeno, Alberto o Grande), dizendo que a matriz ou madre “é o lugar em cujo fundo se acham aqueles corpos vesiculares que os antigos chamavam testículos e os modernos chamam ovários”. Herdeiros da tradição medieval, tais doutores insistiam em sublinhar a função reprodutiva da madre, excluindo o prazer. A função do “amor Veneris dulce apellatur” nem era lembrada. Não lhes interessava, se a mulher gozava ou não. A entranha, mal descrita e mal estudada – comparada à peras, ventosas e testículos – acabava por reduzir a mulher à sua bestialidade.

Repetiam igualmente, de mestres antigos como Platão, que tal como um animal vivo e irrequieto, – “animal errabundo”, segundo Bernardo Pereira – o útero era capaz de deslocar-se no interior do corpo da mulher, subindo até a sua garganta, causar-lhe asfixia. Quando não se movimentava, emitia vapores ou “fumos” capazes de infectar “o cérebro, o coração, o fígado”. Acreditava-se, ainda, que o útero se alimentava de sangue e “pneuma” e que o espírito vital, emitido pelo homem, encarregado da fecundação chegava-lhe através de uma grande artéria que desceria do coração ao longo da coluna vertebral. No processo de fecundação, a fêmea era um elemento passivo. Comparada por alguns médicos à galinha, tinha por exclusiva função portar os “ovos”.

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Uma das características do útero era a sua capacidade de amar apaixonadamente alguma coisa, e de aproximar-se do membro masculino por um movimento precipitado, para dele extrair o seu prazer. Porém, o aspecto mais tocante de sua personalidade, segundo um médico, seria “o desejo inacreditável de conceber e procriar”. Enfim, era como se as mulheres portassem algo de vivo e incontrolável dentro delas!

Ser assexuado, embora tivesse clitóris, a mulher só cabia uma função: ser mãe. Ela carregou por quinze séculos, a pecha imposta pelo cristianismo: herdeira direta de Eva, foi responsável pela expulsão do paraíso e a queda dos homens. Para pagar seu pecado, só dando a luz entre dores.  Os médicos, no século XVI, acabaram por definir o desejo sexual como algo negativo e mais feminino do que masculino. O coito não era necessário ao homem para a conservação da saúde – diziam. Mas se a mulher fosse privada de companhia masculina, ela se expunha a graves riscos. A prova era a “sufocação da madre”, nas viúvas, freiras e solteironas: “É uma fome ou sede desta tal parte. Doença que só cessa com o socorro do macho”.

Um grande médico renascentista, o francês Ambroise Paré, ao diferenciar animais e humanos, afirmava: “As fêmeas dos animais fogem dos machos tão logo são fecundadas; o contrário acontece às mulheres; pois elas o desejam para a deleitação, e não somente para a multiplicação da espécie”. Enfim, o prazer feminino era considerado tão maldito, que, no dia do Julgamento Final, as mulheres ressuscitariam como homens: dessa forma, no “santo estado” masculino não seriam tentados pela “carne funesta”, reclamava Santo Agostinho. Com essa pá de cal, as mulheres foram condenadas por padres e médicos a ignorar, durante séculos, o prazer.

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Entre os séculos XII e XVIII, a Igreja identificava, nas mulheres, uma das formas do mal sobre a terra. Quer na filosofia, quer na moral ou na ética do período, a mulher era considerada um ninho de pecados. Os mistérios da fisiologia feminina, ligados aos ciclos da lua, ao mesmo tempo em que seduziam os homens, os repugnava. O fluxo menstrual, os odores, o líquido amniótico, as expulsões do parto e as secreções de sua parceira os repeliam. O corpo feminino era considerado impuro.

Venenosa e traiçoeira, a mulher era acusada pelo outro sexo de ter introduzido sobre a terra o pecado, a infelicidade e a morte. Eva cometera o pecado original ao comer do fruto proibido. O homem procurava uma responsável pelo sofrimento, o fracasso, o desaparecimento do paraíso terrestre e encontrou a mulher. Como não desconfiar de um ser cujo maior perigo consistia num sorriso? Nesse retrato, a caverna sexual tornava-se uma fenda viscosa do inferno. – Mary del Priore

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“Adão e Eva”, de Paul Rubens.

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  1. Selmar

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