Morte às “vadias”?!!!

Por Márcia Pinna Raspanti.

O ano de 2017 se inicia com várias tragédias, infelizmente. Em Campinas, interior paulista, um homem assassinou a ex-mulher, o filho de  8 anos, e mais dez pessoas da família dela – quase todas do gênero feminino. Em uma carta, divulgada amplamente pela imprensa (e com uma grande dose de sensacionalismo), o assassino (que se suicidou depois dos crimes) afirmava que seu objetivo era “pegar o máximo de vadias juntas” para matá-las. Ele disse que não odiava todas as mulheres, apenas as “vadias” que se beneficiam da lei “vadia da penha”. Um caso chocante e que coloca de forma crua a misoginia contida em muitos discursos e atitudes presentes em nosso dia a dia.

Obviamente, esse foi um caso extremo, em que ocorreu uma terrível combinação de fatores: machismo, misoginia, desequilíbrio emocional e propensão para a violência (os profissionais da área são mais capacitados para classificar os problemas mentais do criminoso). Porém, é importante refletirmos sobre o ocorrido. As ideias expressas por ele permeiam toda a nossa sociedade e trazem as mais diversas consequências. Já falamos muito sobre a violência doméstica e sexual contra as mulheres, alertando para a necessidade de buscar modificar alguns padrões culturais que criam um terreno fértil para tais situações. Leis e punições severas são importantes, mas não excluem uma ampla discussão sobre o tema. Pelo contrário.

A visão de que a mulher  é apenas uma propriedade do marido, amante ou mesmo do pai tem sido uma das maiores causas do feminicídio e da violência contra o gênero feminino. Nos tempos do Brasil Colônia, as mulheres sofriam com agressões físicas e psicológicas, com o abandono, a humilhação e a privação de bens ou dos filhos. Mas elas tentavam se proteger e pediam ajuda para as autoridades existentes:  “apelar ao governador de plantão era recurso habitual de mulheres que não hesitavam em abrir processo de divórcio ou separação de corpos no tribunal eclesiástico. (…)”, conta Mary del Priore, em Conversas e Histórias de Mulher. Até hoje a expressão “reclamar com o bispo” significa reclamar em vão…

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Na legislação lusa e na sociedade colonial, a punição do assassinato do cônjuge por adultério era desigual. “Enquanto para as mulheres não se colocava sequer a possibilidade de serem desculpadas por matarem maridos adúlteros, aos homens a defesa da honra perante o adultério feminino comprovado encontrava apoio nas leis. O marido traído que matasse a adúltera não sofria nenhuma punição. Diziam as Ordenações Filipinas: ‘Achando o homem casado sua mulher em adultério, licitamente poderá matar assim a ela, como o adúltero, salvo se o marido for peão, e o adúltero, fidalgo, desembargador, ou pessoa de maior qualidade’. Assim, enquanto a condição social do parceiro do adultério era levada em conta, a condição social da adúltera não se revestia da menor importância; tanto podia ser morta pelo marido a plebeia como a nobre. Outra punição para as adúlteras era o confinamento em um convento”, conta a historiadora.

A aceitação de crimes em “defesa da honra” sempre foi um fato em nossa história: atravessou os tempos, coloniais, imperiais, a República Velha. O Código Civil de 1916, por exemplo,  dava respaldo à autoridade do marido. Havia regras sociais que delimitavam claramente os lugares do homem e da mulher. “Não se pode esquecer ainda que a contrapartida do marido provedor era a mulher responsável pela honra familiar. Ou seja, em troca do sustento garantido, a casada deveria se distinguir socialmente, respeitando os ditames da moral e dos bons costumes”, relatam Mariana Maluf e Maria Lúcia Mott, em “Recônditos do Mundo Feminino” (História da Vida Privada no Brasil 3).

Mesmo após a revolução sexual dos anos 60, a tese permaneceu firme. Um dos crimes mais famosos dos anos 70 foi cometido na praia dos Ossos, em Búzios, balneário no Rio de Janeiro. Em 30 de dezembro de 1976, Doca Street, personagem da alta sociedade paulistana, matou com três tiros no rosto e um, na nuca, sua amante, a mineira Ângela Dinis. Tudo começou com uma crise de ciúme. “Ela vivia comparando Doca com outros namorados”, explicou o advogado do assassino. Acusada de “amores homossexuais” e devassidão, a defesa conseguiu provar que Ângela tinha má conduta e fora agredida para que Doca preservasse “a legítima defesa” de sua honra.

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Mais uma vez, em pleno século XX, “condenou-se a vítima e absolveu-se o assassino”, resume Mary del Priore, em Histórias Íntimas.  “A pena de morte para mulheres infiéis não tinha sido revogada, como demonstrou o assassinato em ‘legítima defesa da honra’ perpetrado pelo engenheiro Márcio Stancioli, de 32 anos, que descarregou seu revólver calibre 38 na mulher, Eloiza Ballestros Stancioli, também de 32 anos”, complementa a historiadora, na mesma obra. E até hoje, sempre que se comete um crime contra mulheres, a principal estratégia da defesa é atacar o comportamento da vítima, difamá-la, humilhá-la, expor sua intimidade…

Outro ponto que chama a atenção no discurso do homem que cometeu a chacina em Campinas é a separação entre as mulheres “de bem” e as “vadias”. A sociedade brasileira, e a imprensa em especial, sempre exaltou um modelo ideal de mulher, “boa mãe, obediente e que sabia o seu lugar”. Feministas e “liberadas” eram criticadas (e ainda são). No início do século XX, as publicações para o público feminino eram enfáticas:“moça dos tempos modernos” –  vestida de maneira sensual, maquiada e perfumada, perambulando sozinha pelas ruas – era vista como uma ameaça à harmonia da sociedade. Moça “direita” deveria estar sempre acompanhada e manter a discrição. Quem não se encaixasse nos padrões impostos, pagava um alto preço por suas escolhas: era vista como louca, ninfomaníaca, promíscua, masculinizada ou recalcada.

Nos anos 50, pouca coisa havia mudado, a imprensa continuava classificando as mulheres jovens como moças de família, que deveriam ser respeitadas, e moças levianas, que mereciam apenas desprezo. Era preciso, antes de tudo, “dar-se ao respeito”. As curras, crimes mais comuns na época do que se poderia imaginar, só ocorriam com moças imprudentes ou avançadas demais, repetiam os adultos. O caso Aída Curi foi emblemático. E as publicações da época não cansavam repetir tal advertência ao público feminino. As revistas deixavam claro que as moças que ficassem com má fama (de vassourinha ou maçaneta) não conseguiriam se casar ou poderiam ter destino pior.

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Depois de tantas mudanças nos costumes, como é possível manter esse discurso moralista atualmente? Afinal, com a liberação sexual, as regras de comportamento se tornaram bem mais flexíveis.  O mais importante é entender que as “vadias” são basicamente as mulheres que não “conhecem o seu lugar”. Desafiar o poder masculino ainda é visto como uma afronta. E quando isso ocorre, os velhos e assustadores fantasmas do passado entram em cena. A vítima se torna culpada e precisa enfrentar o implacável julgamento da opinião pública. Maridos e companheiros não aceitam a rejeição e muitos reagem de forma violenta. Não faltam histórias trágicas divulgadas na mídia.

No caso de Campinas, a vítima já havia registrado várias queixas contra o ex-marido. Mesmo assim, as cartas do assassino surpreendentemente têm despertado simpatia em muita gente. Nelas, o homem afirma que foi afastado do filho (que ele acabou matando) e isso o estava levando ao desespero. O assassino seria vítima de um suposto complô de “vadias” para que se mantivesse longe do filho, acreditava ele, em uma espécie de realidade paralela e distorcida. Pois bem, ele mesmo tratou de provar que a Justiça, a família da ex-mulher e as tais “vadias” estavam certas. Ele representava realmente um perigo para a criança. Mais vidas perdidas e destroçadas.

Só nos resta chorar pelas vítimas e por essa sociedade doente que tenta justificar o injustificável ou prefere fechar os olhos para o monstro que se manifesta tanto nas atitudes aparentemente corriqueiras quanto em explosões de violência.

  • Texto de Márcia Pinna Raspanti.

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2 Comentários

  1. Bruno Azevedo
    • Márcia

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