Moleque escravo açoitado até a morte pelo crime de sodomia (1678)

Por Luiz Mott.

O segundo  registro de um crime homofóbico ocorrido no Brasil nos leva a Sergipe del Rey, no ano do Senhor de 1678. A vítima é um moleque escravo que foi açoitado até à morte por ter mantido relação sodomítica com um capitão do exército. Tal episódio encontra-se registrado no 14º Caderno do Nefando da Inquisição de Lisboa: Frei Inácio da Purificação, carmelita da Bahia, denuncia ao Santo Ofício uma série de delitos contra a Fé e bons costumes observados na Ouvidoria de Sergipe: “na Vila Nova do Rio São  Francisco,  vi um homem por nome Capitão Pedro Gomes, tão escandaloso em cometer o pecado nefando, que publicamente o comete com brancos e pretos, e na mesma fama está também incurso um sacerdote, Padre Diogo Pereira, morador na Cotinguiba,  a 5 léguas de Sergipe del Rey”.

1590 é a data oficial da conquista de Sergipe e fundação da cidade de São Cristóvão. Assim sendo, em 1678, quando da denúncia deste crime de morte contra um jovem escravo sodomita, a Ouvidoria de Sergipe, agregada à Capitania da Bahia, já contava com quase um século de colonização, tanto que nesse sumário inquisitorial, dos 19 denunciantes, 6 já eram sergipanos natos, 6 portugueses e os 7 restantes, naturais das capitanias limítrofes. Estima-se que nessa Comarca viviam então aproximadamente 17 mil habitantes, dos quais 1/4 constituído de brancos luso-brasileiros, conhecidos como “mazombos”, predominando contudo os negros crioulos e africanos, mulatos, mamelucos e índios aldeados. Sergipe contava então com quase uma vintena de engenhos de açúcar, sua principal fonte de renda.

Nesta sociedade fortemente marcada pela agroindústria canavieira e forte presença da mão de obra escrava, que em 1678 chega ao Tribunal do Santo Ofício de Lisboa a denúncia de que em São Cristóvão, além dos dois citados sodomitas, havia também dois bígamos cujas primeiras esposas viviam em Pernambuco; que na vila de Itabaiana, na boca do Sertão, havia um colono com “fama de mourisco” que ao ouvir dizerem mal de sua filha, comentou que ela era tão pura quanto a Virgem Nossa Senhora”;  que um outro morador dizia a quantos quisessem ouvir que “não adorava a cruz, de pau porque dele se faziam instrumentos baixos ” e que no Rio Real, há 30 anos passados, “se fez uma procissão em que se deu culto de santa a uma moça reputada por donzela e levando-a num carro,  um seu primo, o Padre Antônio Correia a foi incensando com um turíbulo e na igreja o Capelão fez uma prática em louvor da dita”.

Tais denúncias eram um prato cheio para os Inquisidores, pois envolviam a quase totalidade dos crimes perseguidos pelo Santo Tribunal: sodomia, bigamia, blasfêmia e proposições heréticas. Contudo, os Inquisidores fazem olho grosso das acusações de bigamia, heresia e blasfêmia, ordenando devassar apenas os supostos criminosos envolvidos com a prática do “amor que não ousava dizer o nome”.  A decisão do Santo Oficio de inquirir apenas o crime de sodomia revela-se excepcional na pragmática inquisitorial, pois não notamos maior intolerância dos Inquisidores face à homossexualidade em detrimento dos demais crimes. Neste caso específico, interpretamos a caça exclusiva aos sodomitas de Sergipe ao fato de se tratar de pessoas socialmente destacadas, um capitão militar e um sacerdote, acrescido de darem motivo a perniciosa publicidade e escândalo, posto que um dos denunciados chegava à inaudita ousadia de não esconder suas relações homoeróticas com brancos e pretos, desrespeitando não apenas a ortodoxia da mo­ral sexual vigente, mas também as regras de apartação social que na Colônia condenavam intimidades, sobretudo públicas, entre brancos e as pessoas de cor.

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O encarregado deste sumário foi o Prior do Carmo de São Cristóvão, Frei Henrique de Jesus: ao todo foram ouvidas 19 testemunhas, transcorrendo o inquérito durante 51 dias.  Várias das testemunhas confirmam os rumores contra três sodomitas: o primeiro a ser denunciado foi o Padre Diogo Pereira, morador na vizinha fre­guesia da Cotinguiba, cujo escravo, o ne­gro Garcia, reclamava que seu senhor “o perseguia no nefando e se quisesse confirmar que fosse ver à noite.” Essa mesma má fama é ratificada pelo Vigário Geral da Ouvidoria e pelo seu servente: dizem que o delato sacerdote cometia o nefando com seus escravos, acrescentando então o nome de um segundo sodomita: Manoel da Mota , infamado publicamente de cometer o nefando com um negro, denúncia con­firmada por mais dez testemunhas. O terceiro sodomita, o Capitão Pedro Gomes, é quem nos leva ao hediondo crime homofóbico contra o dito moleque escravo.

Observe-se, contudo, nestas três denúncias de sodomia, a presença constante de um ou mais escravos, seja propriedade do delata­do, seja de seus vizinhos: Gilberto Freyre tinha razão ao enfatizar o quanto a escravaria esteve comprometida, ora livremente, ora forçada pela obediência servil, com as práticas eróticas dos donos do poder.

Contra o Capitão Pedro Gomes as denúncias eram mais graves, tanto no número – 12 testemunhas – quanto na variedade dos parceiros sexuais e publicidade escandalosa do crime nefando, além do fato de um de seus cúmplices ter sido morto em consequência do castigo a este abominável pecado.

Pouco sabemos sobre este primeiro “capitão gay” de Sergipe: segundo Predo Calmon, Pedro Gomes primeiro foi alferes e depois capitão em Sergipe del Rei, fundador do morgado de Porto da Folha. Natural de Setúbal, passou ao Brasil em 1625, na armada de D. Fradique de Toledo, tendo lutado bravamente na guerra contra os holandeses. Embarcou na frota do Conde da Torre, ajudando a desalojar os holandeses do Rio São Francisco. O historiador Felisbelo Freyre acrescenta que Pedro Gomes teria chegado em São Cristóvão em 1651, com a patente de Sargento Mor, capitaneando 200 mosqueteiros para reprimir a rebeldia do Capitão Mor Manuel Pestana Brito contra as ordens do Conde de Antouguia, então Governador da Bahia. Posteriormente teria sido Governador interino da Capitania do Rio de Janeiro e professo da Ordem de Cristo. Morreu em 1692. Um portentoso curriculum confirmando que braveza militar não é incompatível com a preferência pela retaguarda no campo do erotismo… Consta ser casado, aliás, como grande parte dos sodomitas de antanho e da atualidade.

Alguns denunciantes dizem que vivia na outra banda do Rio Sergipe, outros, no Rio São Francisco, mais precisamente, no Benfica. Sua fama pública de sodomita grassava há mais de 12 anos, o que nos permite conjecturar que nos seus quinze primeiros anos nesta Ouvidoria, ou não praticava ou manteve sigilosa sua preferência homoerótica. Várias testemunhas sabiam apenas que o Capitão nefandava com seus negros, outras, contudo, foram mais explícitas: seu escravo predileto chamava-se Gaspar. O próprio Gaspar quando certa vez questionado sobre este vergonhoso rumor público, reduziu para “solicitações” as investidas sensuais de seu amo à sua pessoa, dizendo em contrapartida, que com o crioulo Félix e com o moleque Parfeito, com estes sim, sabia que consumara o nefando pecado de sodomia. O próprio filho de outro militar, o Capitão João Abreu, também se queixara dos assédios do companheiro de armas de seu pai.

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Pois bem: certa vez, “pelejando” a matriarca da família Porto Carreiro com Gaspar, o dito escravo infamado de transar com o Capitão gay,  acuado pela cobrança de sua má fama, respondera que assim o fazia, “por que era cativo”, ao que a branca bisbilhotei­ra atalhou demolidora: “E por seres cativo, servis de mulher ao teu senhor?” Infeliz­mente, o Escrivão da devassa encerrou aí as informações sobre este bate-boca. Outros denunciantes trazem informações mais factuais sobre as fanchonices do infamado Capitão Gomes, sobretudo seus vizinhos da Japaratuba: a 11ª testemunha narra ter visto no traseiro de um moleque as provas do ímpeto sodomítico do delato, o qual  dissera que “seu senhor abrira com ele, molestando”. Também relata que Gaspar, o negro predileto do Capitão, certa feita fugira de casa alegando que seu senhor dormia com ele à força, pondo uma pistola em seu peito, ameaçando matá-lo caso não o satisfizesse.

Que o leitor não se choque com essas cenas de violência sexual: se o Santo Tribunal e o próprio Bispo torturavam, açoitavam, mandavam queimar os sodomitas e outros dissidentes religiosos,  não há porque esperar doçura destes primeiros machos povoadores do Brasil. A violência sádica na prática libidinosa entre heteros­sexuais chegava às raias da insanidade, incluindo também agressões e torturas praticadas pelas senhoras enciumadas contra as amantes de seus senhores maridos. Foi um morador na Japaratuba quem fez a denúncia da execução do moleque sodomita: diz que certa vez o capitão Pedro Gomes pedira um negro emprestado a seu vizinho, Luís Gomes, para acompanhá-lo numa jornada. Ao voltar o negro “trouxera umas ceroulas vestidas. E per­guntando seu senhor donde ou a quem furtara, o não quis dizer. E por este respeito, o mandara açoitar, parecendo-lhe que as furtara. E estando a açoitar, confessara o negro que aquelas ceroulas lhe tinham dado o Capitão Pedro Gomes, por cometer com ele o pe­cado nefando.” Se o outro escravo, Gaspar, espalhava que o dito sodomita forçava-o violentamente ao nefando, este pobre cativo, pelo contrário, fora graciosamente recompensado com um par de ceroulas, um presente, convenhamos, bastante generoso, pois naquela época, não havia costume de se retribuir materialmente pelos serviços sexuais da escravaria, quer machos, quer fêmeas. Mesmo em Lisboa, muitos sodomitas brancos contentavam-se em troca pelos mesmos serviços homoeróticos, com um par de meias ou apenas 2 vinténs, que foi a soma dada na Bahia pelo Padre Frutuoso Álvares ao seu cúmplice, o estudante Jerônimo Parada, o primeiro “rapaz de programa” documentado em nossa história.

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Estas nefandas ceroulas custaram a vida do jovem escravo: a mesma testemunha declarou que “este negro morrera dos açoites que então lhe mandou dar seu senhor.” Outro informante, Francisco Andrade Pacheco, morador nos Poxins, foi mais categórico: “matou o moleque por ter cometido o nefando com Pedro Gomes”.

Avançamos uma hipótese para explicar tamanha crueldade e intolerância do proprietário Luís Gomes vis-a-vis seu moleque, que sob tortura, confessou ter mantido relação homoerótica com o militar sodomita. Do mesmo modo como as ricas senhoras no Brasil colonial, usavam os negros corpos de suas escravas e molecas como “vitrines ambulantes” para exibirem suas joias mais pre­ciosas no caminho da Igreja, como retratou Debret em suas gravuras, inversa­mente, um escravo trazendo a prova confessada e pública de que praticou o abominável crime de sodomia com um branco, representava conduta insuportável,  ultraje humilhante à honra de seu senhor.  O ouro nas escravas enaltecia o brilho e poder das Sinhás, a prova da sodomia do escravo representava o desdouro e aviltamento de toda a casa do senhor. Numa sociedade patriarcal cuja sobrevivência individual e coletiva baseava-se na violência e bravura dos machos donos do poder, um homem “dar as cos­tas” ou “servir de mulher” a outro, punha em cheque as mesmas bases onde se assentavam a hegemonia e estabilidade patriarcal. Um sodomita, sobretudo se efeminado e envolvido com amantes de estratos antagônicos – p. ex., um Capitão do Exército amante de um adolescente  escravo, punha em jogo a desejada impermeabilidade estamental, destruindo o estereótipo do senhor branco supermacho,  deflorador das crias de seu borralho, rigoroso no uso do chicote, zeloso da pureza e recato das mulheres de sua casa. O anônimo moleque sergipano foi morto a chicotadas porque ultrajou o machismo falocrático de seu amo e os rígidos padrões da heteronormatividade da sociedade colonial lusobrasileira. Sua execução a golpes de chibata cumpriu rigorosamente dois  abomináveis ditados ainda hoje repetidos de norte a sul em nosso país: “Viado tem mais é que morrer!” e “Prefiro um filho morto do que homossexual!”

Não sabemos qual o paradeiro do infamado Capitão: provavelmente abandonara Sergipe ao tomar conhecimento que sua vida e costumes criminosos estavam secretamente sendo devassados. Já uma vez tivera de esconder-se para evitar a hora da verdade: consta que quando o Bispo de Pernambuco D. Estevam Brioso (1678-1689), visitou a Vigaria de Sergipe, “o Capitão se ausentara para o Sertão para não tratar com o  Bispo sobre esta matéria.”  O fato de ter recebido o Hábito de Cristo e ser nomeado governador da Capitania do Rio de Janeiro sugerem que tal nefando  rumor e sumário de  culpas não chegaram ao conhecimento da burocracia real. Tais denúncias não foram consideradas pelos juízes da Inquisição  suficientemente graves para ordenar abertura de processo e prisão deste  Capitão sodomita. Nem sequer as justiças reais trataram de punir ao culpado pela criminosa execução do moleque escravo. Prevaleceu a impunidade dos poderosos.

(Trecho retirado do livro “História do Crime no Brasil”, a ser lançado em 2015).

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Moenda de cana, de Jean-Baptiste Debret.

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