Mães e filhos: risos, palmadas e mimos

O convívio entre mães e filhos apresentava também facetas mais práticas e menos teóricas. Para combater o que se chamava de “mimos maternos”, únicos responsáveis por “deitar a perder os filhos” o melhor seria o castigo quando “obrassem mal”. E tudo indica que tais castigos eram as tradicionais palmadas. Os tradicionais bolos, os beliscões e as palmadas revezavam-se no cotidiano das mães com o chamado “folgar com os filhos”. Mas tudo indica que esta última fosse uma tarefa exclusivamente feminina. “Contar graças, histórias, acalentá-los” ou “estremecer sobre eles”, como dizia Francisco Manuel de Melo, era coisa de mulher. “Não é coisa pertinente a um homem ser ama nem berço de seus filhos”, resmungava o mesmo autor.

Risos, palmadas, mimos, mas também lágrimas e apreensão faziam o convívio de mães e de sua prole, e tanto o ideal quanto a realidade da maternidade eram constituídos por preocupações permanentes em torno da saúde, dos males e achaques que podiam atingir a pequena infância. João de Barros já afirmava, no século XVI, que os “trabalhos e fortunas que se leva com filhos pequenos em suas doenças, e as mezinhas e romarias que lhes buscam suas mães não o podem crer senão quem os passa”.

O consenso tradicional sobre os laços que uniam mães e filhos já estava tão estabelecido que não se podia visualizar a maternidade sem uma dose robusta de dor, sofrimento e altruísmo. Altruísmo que, por vezes, beirava o dramático ou o patético. O desespero de mães diante do inelutável ou das situações de emergência em que viam seus filhos ficou registrado nos inúmeros ex-votos pintados nos séculos XVII e XVIII, que se guardam em coleções particulares ou museus de arte sacra. O sofrimento da mãe diante do sofrimento do filho encontrava na piedade, na devoção e nas romarias de que fala João de Barros uma saída viável. O retrato da mãe em lágrimas pela agonia do filho inundou o texto de pregadores e moralistas, acentuando a valorização da criança pequena, o ‘mínimo’, mas também a exaltação da maternidade e dos cuidados que se devia ter com a prole.

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Angelo de Sequeira , em 1754, por exemplo, refere-se a uma mulher que “falecendo o seu filhinho” chorava pedindo a Nossa Senhora da Lapa que o fizesse ressuscitar, que “por distância de duas horas esteve morto e ressuscitara”. Suas lágrimas o salvaram. A dor das mães explicitava-se também nas romarias, tal como ocorreu com dona Benta de Barros, da freguesia de São Pedro da Bahia, que levou a filha adoentada até o convento de São Bento, em Salvador. Lá, depositou a ‘mínima’ no altar de Nossa Senhora das Angústias, onde depois de uma missa “se viu a menina livre de febre, tomou o peito e logo começou a melhorar” (Santa Maria. O milagre e a intervenção divina ficavam sendo o pano de fundo para os problemas da pequena infância no período colonial.

O adocicado universo em que se moviam mães e filhos, segundo a Igreja e seus porta-vozes, devia ser resultado do casamento e de uma vida privada em que houvesse lugar para as práticas cristãs. Apenas nesse ambiente as mães teriam asseguradas para sua prole a saúde necessária, a proteção das falanges celestiais e a educação que lhes facultaria ‘ter um estado’.

Fora desse território aparentemente protegido encontravam-se os ‘pais pobres’, sobre os quais escreve Vilhena, em 1802. Entre estes, a herança deixada “às suas filhas é de inveterada ociosidade. […] a liberdade em que se deixaram viver de crianças, e por isto é que depois de adultas se valem delas para poder subsistir, pelo que são perniciosíssimas à sociedade”. Além dessas filhas a quem faltaram certamente as “boas regras” encomendadas pelo anônimo autor português, havia aqueles que eram perseguidos e estigmatizados por terem pais concubinados.

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Comparados a ‘imperfeições da cristandade’ e a ‘aleijados da natureza’, os filhos concebidos fora do matrimônio pareciam excluídos da relação ideal que a Igreja preconizava para mães e filhos. Eles eram a corporificação dos pecados paternos, e por isso mesmo tornavam-se uma lembrança em carne viva da procriação que havia rompido com as leis do Estado e da Igreja, procriação que, como demonstrado, só cabia nos limites do casamento legítimo. Daí a importância do exemplo materno na educação da prole; cabia à mãe estigmatizar os comportamentos transgressivos, impedindo que seus filhos os reproduzissem. Cabia às mães, por seu comportamento devotado, regrado e piedoso valorizar tanto a vida familiar através de sua relação com seus filhos que as demais possibilidades de convivência parecessem vazias de valor.

A mulher casada, possuidora de uma boa fisiologia moral, mãe e, por fim, transmissora das demandas da Igreja à sua prole corporificava finalmente o agente funcional e eficiente para tornar realidade o projeto de adestramento proposto pela Reforma católica, projeto este que se propunha à normatização de seu próprio gênero na Colônia.

– Mary del Priore. (“Ao Sul do Corpo”, Ed. José Olympio/Edunb).

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“Madona e criança”, de Pompeo Batoni.

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