Lugar de mulher?

            Nos últimos dias, alguns fatos envolvendo mulheres geraram enorme polêmica. Vou destacar apenas dois: o primeiro, o estupro de uma adolescente no Rio de Janeiro, filmado e divulgado nas redes sociais; o segundo foi a agressão de policiais militares a uma manifestante em São Paulo. A pergunta que muita gente se faz é: o que elas estavam fazendo ali? Se estivesse em casa ou na igreja, isso não teria acontecido. Nos dois casos, muita gente afirmou que a violência foi uma consequência natural do comportamento das vítimas. A culpa ou a responsabilidade teria sido delas.

          Não vamos entrar no mérito dos fatos, tão diferentes entre si, por sinal, mas nos concentrar na ideia de elas estavam no lugar errado. Sozinha, no baile funk, usuária de drogas, mãe solteira? Só podia dar no que deu. Mulher em protesto, desafiando a polícia, ocupando prédios públicos? O que ela queria? Receber flores dos policiais? O interessante é que ambos os casos foram documentados. Não há como argumentar que a vítima de estupro não estava desacordada e não há como argumentar que a polícia usou força excessiva para dominar uma mulher desarmada. Mesmo assim, a tendência é condenar essas mulheres por estarem onde não deviam e não os agressores.

      Essa ideia de que a mulher deve ficar restrita ao lar e a determinados espaços é bem antiga. No período colonial, a Igreja tentou de todas as formas para controlar as mulheres, chegando a impedir até a existência de conventos femininos para evitar que elas tivessem outros papéis que não aquele determinado pela vida familiar. “A Igreja apropriou-se da mentalidade androcêntrica presente no caráter colonial e explorou as relações de dominação que presidiam o encontro de homem e mulher, incentivando a última a ser exemplarmente obediente e submissa. A relação de poder já implícita no escravismo reproduzia-se nas relações mais íntimas entre marido e mulher, condenando esta a ser uma escrava doméstica, cuja existência se justificasse em cuidar da casa, cozinhar, lavar a roupa, servir ao chefe da família com o seu sexo, dando-lhe filhos que assegurassem a sua descendência e servindo como modelo para a sociedade familiar com que sonhava a Igreja”, conta Mary del Priore, em “Ao Sul do Corpo”.

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        Esse ideal de mulher que se restringe ao lar e às obrigações familiares vai persistir por muito tempo. Isso não significa que elas se conformaram com essas regras. Até pelas difíceis condições de vida na colônia, muitas mulheres se tornaram chefes de família e trabalharam para sustentar suas famílias, em diversas ocupações, como pequenos comércios, principalmente de comidas e quitutes. A Igreja, contudo, se empenhava em normatizar a vida feminina, e com ajuda de uma grande aliada, a medicina, tentava controlar a sexualidade e a fecundidade das mulheres. “Cabia então à medicina dar caução à Igreja, a fim de disciplinar as mulheres para o ato da procriação. Apenas vazio de prazeres físicos o corpo feminino se mostraria dentro da normalidade pretendida pela medicina, e assim, oco, se revelaria eficiente, útil e fecundo. Apenas como mãe, a mulher revelaria um corpo e uma alma saudáveis, sendo sua missão atender ao projeto fisiológico-moral dos médicos e à perspectiva sacramental da Igreja”, completa Mary.

       Gilberto Freyre, em “Vida Social no Brasil nos Meados do Século XIX”, relata que a mulher de classe alta nessa época raramente saía de casa. “Era prisioneira da casa. Preconceitos mouriscos conservavam-na distante das atraentes lojas de modas ou chapéus de senhoras (…). Dentro de casa, porém, a iaiá brasileira não passava o dia deitada. Em casa tipicamente brasileira, castiçamente patriarcal do meado do século XIX, trabalhos de toda a espécie realizavam-se no correr do dia”. A mulher tinha certo poder dentro de casa, cuidava das tarefas domésticas, supervisionava os escravos “de dentro”, controlava os filhos. Era a “rainha do lar”, usando uma expressão que vai aparecer posteriormente. O seu espaço era o privado, enquanto o homem senhoril “gastava a maior parte de seu tempo na rua, na praça pública, à porta de algum hotel francês, na repartição pública ou no armazém. A situação era muito parecida com a da Grécia antiga”, observou Freyre.

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         Nas primeiras décadas do século XX, o rigoroso discurso ideológico dos setores conservadores reforçava os rígidos papéis sociais das mulheres. “Baseado na crença de uma natureza feminina, que dotaria a mulher biologicamente para desempenhar as funções da esfera da vida privada, o discurso é bastante conhecido: o lugar da mulher é no lar, e sua função consiste em casar, gerar filhos para a pátria e plasmar o caráter dos cidadãos de amanhã. Dentro dessa ótica, não existiria realização possível para as mulheres fora do lar; nem para os homens dentro de casa, já que a eles pertenceria a rua e o mundo do trabalho”.  (“Recônditos do Mundo Feminino”, de Mariana Maluf e Maria Lúcia Mott, em História da Vida Privada no Brasil, vol. 3).

       Mesmo assim, sob forte resistência e intenso ataque inclusive da imprensa, as mulheres saíram de casa para trabalhar, conquistaram a participação política, e cada vez mais se apropriam do espaço público. Tivemos a revolução sexual dos anos 60, a pílula anticoncepcional e a mudança de costumes, mas esse discurso persiste até os dias de hoje. A mulher só estaria segura dentro de casa, se ela resolve sair, entrar no mundo dos homens, deve arcar com as consequências. As mulheres que subvertem a ordem, que não se conformam com os papéis tradicionais que lhes são reservados, sofrem uma forte condenação moral – e nos dias de hoje, virtual.

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        Isso tudo acaba por relativizar, aos olhos de muitos, os atos de violência contra nós. Dizem que uma imagem vale mais que mil palavras, mas nesses casos as imagens vêm acompanhadas de milhares de conjunções adversativas e condicionais, “mas, porém, se”:  Ela foi estuprada, mas o que estava fazendo lá? E se: ela deu chance, ela provocou, ela queria?  Ela apanhou, mas será que não deu motivo? Se fosse direita, se estivesse em casa, no trabalho, cuidando dos filhos, na igreja..isso não teria ocorrido. Essas são frases muito disseminadas no Brasil do século XXI, nas redes sociais, inclusive. A divisão entre “mulher da rua” e “mulher da casa” ainda é muito presente, reforçada por um moralismo mal disfarçado.

        A pergunta que fica é: até quando? Até quando seremos culpadas pelas agressões que sofremos? Até quando as vítimas serão julgadas com mais rigor que seus algozes?

  • Texto de Márcia Pinna Raspanti.

 

MTSTPM

Manifestante “imobilizada” pela PM, em São Paulo.

Foto: Jornalistas Livres.

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  1. Gloria Kang

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