Infância roubada

A nossa sociedade, certamente injusta na distribuição de suas riquezas, também é avara, no que diz respeito ao acesso à educação para todos, sendo vincada pelas marcas do escravismo. Como fazer uma criança obedecer a um adulto, como queria a professora alemã que vai, na segunda metade do século XIX, às fazendas do vale do Paraíba, ensinar os filhos dos fazendeiros de café, quando esses distribuem ordens e gritos entre os seus escravos? E não são apenas as crianças brancas que possuem escravos. As mulatas ou negras forras, uma vez seus pais integrados ao movimento de mobilidade social que teve lugar em Minas Gerais, na primeira metade do século XVIII, tiveram eles também seus escravos. Muitas vezes, seus próprios parentes ou até meios irmãos! Na sociedade escravista ao contrário do que supunha a professora alemã, criança, branca ou negra, mandava e o adulto escravo, obedecia. Por vezes, em circunstâncias dramáticas. Retrato em preto e branco desta situação, nos apresentou Kátia Q. Mattoso:

“Em 1872 falecera, em Salvador, Diogo Correia da Rocha, de seu estado viúvo, sem filhos, originário de Pernambuco e, segundo tudo indica, pequeno feirante na praça de Pernambuco. Ao falecer, Diogo deixou quatro escravos e a seguinte situação: uma moça africana nagô chamada Joaquina, já liberta, mãe de Inês, mulatinha que Diogo reconhece como sua filha legítima e universal herdeira. Contudo, por parte da mãe, Inês tem três meios irmãos que são escravos de seu pai. No seu testamento, Diogo dá liberdade gratuita à meia-irmã, a crioula Leopoldina, mas obriga os dois outros meios-irmãos de sua filha, os crioulos Felis e Cosme, ambos oficiais de pedreiro, a trabalharem para a irmã Inês, dando-lhes 320 réis por dia até que esta complete seus quinze anos, após o que os dois crioulos ficam livres. Quanto ao quarto escravo, o crioulo Benedito, oficial de calafate, este poderá ficar livre se no prazo de dois anos pagar à herdeira Inês a quantia de 400$000 réis. Infelizmente o documento não dá nem a idade de Inês, nem a de sua mãe, nem as de seus meios-irmãos, mas nos põe perante uma situação extremamente pungente, na qual as obrigações decorrentes da situação escravista sobrepõem-se e dominam as que naturalmente brotariam no bojo das solidariedades familiares. Não tentemos, porém, nem sequer imaginar o que essa situação podia representar na mente daqueles cuja matriz biológica era comum, mas que se achavam do lado de cá, ou do lado de lá, da divisão livre/escravo. Desta maneira, a criança escrava, não somente convivia com irmãos de cores diferentes, como também convivia com irmãos de status diferentes, que legalmente podiam tornar-se seus senhores”.

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A dicotomia dessa sociedade, dividida entre senhores e escravos, gerou  outras impressionantes distorções, até hoje presentes. Tomemos o tão discutido exemplo do trabalho infantil. Dos escravos desembarcados no mercado do Valongo, no Rio de Janeiro do inicio do século XIX, 4% eram crianças. Destas, apenas 1/3 sobrevivia até os 10 anos. A partir dos 4 anos, muitas delas já trabalhava com os pais ou sozinhas, pois perder-se de seus genitores era coisa comum. Aos 12 anos, o valor de mercado das crianças já tinha dobrado. E por que? Pois considerava-se que seu adestramento já estava concluído e nas listas dos inventários já aparecem com sua designação estabelecida: Chico “roça”, João “pastor”, Ana “mucama”, transformados em pequenas e precoces máquinas de trabalho.

Tais máquinas compravam-se a preço baixo e tinham a vantagem de prometer vida longa em funcionamento. Gilberto Freyre, criticando o “ensardinhamento” em que viajavam os africanos, no auge do tráfico, refere-se a “meninos e adolescentes que sob os nomes técnicos de molequinhos, moleques, crias e molecões”, encontram-se, tantas vezes nas faturas de carregamentos de escravos e nos anúncios de vendas e fugas. “Das faturas de escravos destaque-se este caso típico: de quarenta negros mandados buscar em 1812 por Bento José da Costa, o mais poderoso escravocrata pernambucano de seu tempo, e que constam de um livro manuscrito do outrora engenho do Salgado (…) só dois eram “negros barbados”; os mais eram moleques, molequinhos, crias e molecões. Dezesseis moleconas”.

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Trabalho ao longo da infância, sem tempo para a ideia que comumente associamos à infância, a da brincadeira e do riso, era o lema perverso da escravidão. Contudo, a mesma resistência que se lhe opunham os adultos foi transmitida à criança. Não foram poucas as que contrariaram a obrigação do eito e a exploração, pela fuga. Freyre os acompanhou através de anúncios publicados em jornais pernambucanos e cariocas no século XIX. Eram procurados e caçados, como seus ancestrais.

“Também deve ter sido criado em casa e com muito mimo, em pequeno ninado no colo das iaiás e posto para engatinhar pelos tapetes de lã inglesa da sala de visitas, o mulatinho cor-de-rosa e talvez de sangue ilustre que desapareceu de uma casa do Recife, em 1865; “estatura alta, bem alvo e bonito, seco de corpo, braços compridos, dedos finos e grandes, sendo os dois mínimos dos pés bastante curtos e finos; tem dezoito (18) anos de idade, cabelos corridos e pretos levando eles rentes…mãos e pés bem feitos e cavados, olhos pardos e bonitos, sobrancelhas pretas e grossas, não buça, levou calça de brim branco e já usada e camisa de chita com flores roxas”. Já a mulatinha puxando a sarará, de nome Joana, de 14 anos prováveis, fugida de um engenho do Cabo, seria, com suas pernas e mãos muito finas, “uma verdadeira flor do pecado”, cor alvacenta, cabelo carapinho e russo, corpo regular, com todos os dentes, mas com “vestígios antigos de chicote no corpo…a fala às vezes viciosa…padecendo de bouba nas partes ocultas”.

Quando da abolição da escravidão, as crianças e adolescentes moradores de antigas senzalas, continuaram a trabalhar nas fazendas de cana de Pernambuco. Tinham a mesma idade de seus avos, quando esses começaram: entre 7 e 14 anos e até hoje, ainda cortando cana, continuam despossuidas das condições básicas de alimentação, moradia, saúde, educação e garantias trabalhistas. Como no passado, o trabalho doméstico entre as meninas, também é constante, constituindo-se num “outro” turno, suplementar ao que se realiza no campo. Como se não bastasse a ação de fatores econômicos a interferir na situação da criança, a ausência de uma política do Estado voltada para a formação escolar da criança pobre e desvalida só acentuou seu miserabilismo. Ora, ao longo de todo esse período, a República seguiu empurrando a criança para fora da escola, na direção do trabalho na lavoura,  alegando que ela era “o melhor imigrante”.

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No inicio do século, com a explosão do crescimento urbano em cidades como São Paulo, esses jovens dejetos do que fora o fim do escravismo, encheram as ruas. Passaram a ser denominados “vagabundos”. Novidade? Mais uma vez, não. A história do Brasil tem fenômenos de longa duração. Os primeiros “vagabundos” conhecidos eram crianças brancas  recrutados pelos portos de Portugal, para trabalhar como intermediários entre os jesuítas e as crianças indígenas, ou como grumetes nas embarcações que cruzavam o Atlântico. No século XVIII, terminada a euforia da mineração, crianças vindas de lares mantidos por mulheres livres e forras, perambulavam pelas ruas, vivendo de expedientes muitas vezes escusos, – os nossos atuais “bicos” – e de esmolas. As primeiras estatísticas criminais elaboradas em 1900 já revelam que esses filhos da rua, chamados durante e Belle Époque de “pivettes”, eram responsáveis por furtos, “gatunagem”, vadiagem e ferimentos, tendo na malícia e na esperteza as principais armas de sobrevivência. Hoje, quando interrogados pelo serviço social do Estado, dizem com suas palavras, o que já sabemos desde o inicio do século: a rua é um meio de vida!

– Mary del Priore.

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Acervo digital do Instituto Moreira Salles.

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