Imundas Prisões

         Durante o Estado Novo, a vida da gente brasileira parecia seguir insensata e rápida como uma corrida em direção a um ponto invisível. Novidades vinham de todos os lados, mas sobre elas, pairava a sombra do governo autoritário. A 10 de janeiro de 1933 foi criada a Delegacia Especial de Segurança Política e Social (DESPS) com o objetivo de vigiar e restringir comportamentos políticos suspeitos ou contrários “a ordem e a segurança pública”. Ela era diretamente subordinada à Chefia de Polícia do Distrito Federal e possuía uma tropa de elite, a Polícia Especial, encarregada de examinar publicações nacionais e estrangeiras e manter dossiês de todas as organizações políticas e indivíduos considerados suspeitos. A DESPS serviu de modelo para a criação de delegacias estaduais, já que à Chefia de Polícia do Distrito Federal ditava as regras do controle social a ser exercido pelas polícias dos estados, ainda que estas fossem subordinadas aos governos locais. Para essa centralização foi decisiva a atuação de Filinto Müller, homem de confiança de Vargas e temido chefe de Polícia do Distrito Federal de 1933 a 1942. Seu nome, nome associado ao terrorismo de Estado empregado durante os governos de Vargas, comandou a repressão com poderes absolutos. Segundo informações disponibilizadas pelo CPDOC, amparado pelo Estado Novo e os acontecimentos que lhe sucederam, Muller exacerbou a tendência para criminalizar qualquer atitude contrária ao governo instituído, juntando aos perseguidos políticos comunistas, estrangeiros e até integralistas

A família anarquista de Zélia Gattai não fugiu às garras da polícia, como se vê no testemunho a seguir:

Nossa vida mudava, tudo mudava em torno da família. Em frente à casa, num terreno baldio que servia de quintal foram levantados dois sobradinhos. Num deles veio morar um casal de meia idade, gente discreta […] no outro, a família Apolônio: mãe viúva, duas filhas moças e um filho casado, pai de duas crianças. Soube-se, logo ser o cidadão inspetor da Polícia Política e Social. “Um tira”, disse papai contrafeito. Ele nunca tivera tanta razão. Seria exatamente com nosso vizinho, Luiz Apolônio, que iria defrontar-se, alguns anos mais tarde, na implantação do Estado Novo, em 1937, no cárcere, preso pela Polícia Política, acusado de “comunista perigoso”. Na época do Estado Novo, bastava uma denúncia ou simples suspeita para que uma casa de família fosse cercada por enorme aparato bélico, policiais apontando metralhadoras, lares invadidos – a qualquer hora do dia ou da noite – por policiais armados, pais de família arrancados de seus leitos e arrastados para masmorras, para o porão úmido e escuro da Delegacia da Ordem Política e Social, incomunicável. Foi o que aconteceu à minha família, foi o que aconteceu a meu pai. O chefe das batidas, o perito nos interrogatórios era nosso ex-vizinho Luiz Apolônio.

Provas de acusação: armas – a velha espingarda de caça, pendurada em seu lugar de sempre, atrás da porta – farto material subversivo, constituído pelos volumes de nossa pequena e manuseada biblioteca. Livros de Victor Hugo, “Trabalhadores do Mar”, “Os Miseráveis”, “Notre Dame de Paris, Emile Zola, “Acuso”, “Thereza Raquin”, “Germinal”, de Pietro Gori, “Dramas Anarquistas”, relíquias sagradas de dona Angelina, com o agravante de serem todos os volumes encadernados em vermelho, encadernações bastante desbotadas pelo tempo, mas, na cor proibida; e os precioso arquivo de mamãe, guardado cuidadosamente, debaixo do colchão: artigos políticos, notícias ilustradas sobre prisões e expulsões do país de conhecidos e amigos, entre os quais o velho Oreste Ristori, enviado para as prisões de Mussolini, onde morreu”.

         Enchiam-se as prisões. Era a caça aos dissidentes. Logo no início do Estado Novo, Vargas determinou que os presos políticos fossem para o arquipélago de Fernando de Noronha. O objetivo do presidente era evitar qualquer ameaça ao seu governo. É o que mostra o decreto-lei assinado por ele em 1938: a distante prisão seria destinada “à concentração e trabalho de indivíduos reputados perigosos à ordem pública ou suspeitos de atividades extremistas”. Alguns comunistas importantes passaram por lá, como Gregório Bezerra, um dos líderes da Intentona contra Vargas. Os detentos eram instalados em alojamentos de acordo com seus grupos políticos. Os comunistas ficavam no alojamento central, na Vila dos Remédios, enquanto os integralistas ficavam na horta dos Três Paus. Os presos comuns viviam em um terceiro alojamento, em Quixaba, e em casas espalhadas pela ilha.

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         O cotidiano em Fernando de Noronha era completamente diferente daquele que Gregório Bezerra enfrentara na Casa de Detenção do Recife, onde viveu em uma pequena cela, vigiado 24 horas por dia. Em suas memórias, ele conta que a saúde de vários colegas melhorou na ilha, já que podiam tomar sol e se alimentar melhor. Mas ele não deixa de relatar alguns problemas, como a água poluída que causava disenteria nos detentos. Queixou-se, também, do incômodo da praga de ratos, lagartixas e sapos, além dos mosquitos que atrapalhavam muito na hora de dormir. No entanto, o mais difícil para Bezerra era o isolamento: “A correspondência, além de demorada, era severamente censurada e, o pior de tudo, não tínhamos direito a visitas.”

          Nestor Veríssimo, ex-coluna Prestes, e Gregório Bezerra iriam se descobrir na Ilha. Filho de família paupérrima, marcado por uma infância feita de fome e miséria, Bezerra era um comunista apaixonado que lutou toda a vida por seus ideais. Analfabeto até os 25 anos de idade, e militante desde as primeiras movimentações de trabalhadores influenciados pela Revolução Russa de 1917, Bezerra teve papel de destaque em importantes momentos e por conta de sua militância, passou, 23 anos na prisão, em diversos presídios e épocas.

           Operário da construção civil foi preso pela primeira vez em 1917, quando participava de uma passeata no Recife. Libertado em 1922, apresentou-se ao Exército para prestar serviço militar. Transferido para Recife, já como sargento, em 1930 filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). Em 1935, participou da fundação da Aliança Nacional Libertadora. Com o fechamento da ANL pelo governo federal, a organização passou a funcionar na clandestinidade. Assim, Bezerra foi encarregado de participar da preparação de uma insurreição militar no Recife. Quando eclodiu o levante em Natal, em 23 de novembro de 1935, recebeu ordens de Prestes para desencadear a luta na capital pernambucana no dia seguinte, desarticulada. Ironia: Bezerra foi abandonado pelos companheiros e se viu lutando absolutamente só, como conta em suas memórias. Preso, foi submetido à tortura: eram as chamadas “sessões espíritas” com atrozes espancamentos e constantes ameaças de morte. Em 1937, foi condenado a 27 anos e meio de prisão.

          Em abril de 1939, ele, com mais sessenta presos, deixou a Casa de Detenção de Recife para, num barco, sem ventilação ou água, sufocado num porão, onde havia “urina, fezes e vômitos por toda a parte”, fazer a travessia para a ilha. Em suas memórias, ele recorda o dia a dia e as tensões que ali vigoravam sob a batuta de quem? “Tio Nestor”:

“Tomamos um banho de mar, enquanto o comandante da escolta conversava com o coronel Veríssimo, diretor da ilha de Fernando de Noronha […] com os demais companheiros, fomos para o alojamento central dos preços políticos aliancistas. Falo do alojamento central dos aliancistas porque havia também, um alojamento central para os presos integralistas que estavam na ilha. Ao chegarmos em Fernando de Noronha, já encontramos tudo organizado e funcionando certinho como beiço de bode. Um coletivo bem estruturado e funcionando legalmente, dirigido por uma diretoria composta de um presidente, um secretário, um tesoureiro, um “ministro do trabalho” e um “parlamentar”.

O pessoal se dividia em turmas: de pesca, de lavoura, de horta, de construção civil, de cozinha; havia um encarregado de esportes, arte e cultura. Nós entramos no coletivo com todos os direitos e deveres […] A situação dos companheiros do Nordeste, mesmo aqueles cujo estado de saúde era precário, começou a melhorar sensivelmente, não só devido ao sol, ao ar puro, ao banho de mar, como pelo trabalho físico, que cada um executava de acordo com sua capacidade, e graças também, a alimentação bastante melhorada, e a solidariedade que os companheiros do Rio, que tiveram todo o carinho para conosco. Éramos uma grande família. […]. Nós mesmos cozinhávamos as nossas refeições. Nas épocas de crise, não só nossa turma de pesca se desdobrava, como todo o coletivo se mobilizava para que não houvesse fome em nosso meio. Sal, por exemplo, faltava a muitas pessoas, dias e dias, mas nós tínhamos sal, porque íamos à praia do cachorro, munidos de latas de querosene, que enchíamos de água do mar e colocávamos fogo para evaporar a água e ficar só o sal. […] Havia tempo em que os peixes fugiam da praia, devido ás ondas muito violentas ou porque a água esfriava […]. Mas havia aratus, em grande quantidade que, não podendo fugir para o mar, ficavam mesmo saltando por cima das pedras, na beira da praia. Enchíamos latas e latas de aratus, o que nos dava uma excelente fritada para comer com arroz e feijão. O fato é que fome mesmo, nunca passamos.

                    (…)   Enquanto entre eles, reinava a mais absoluta hierarquia militar em todos os escalões. Oficiais eram oficiais, sargentos eram sargentos e marinheiros eram marinheiros. O que havia de bom, era para os oficiais que não se misturavam com a massa.  […] Reinava o lema, “o que é meu, é meu; e estamos conversados”. Viviam brigando entre eles, dividindo-se e subdividindo-se, mas o pior de tudo era a pederastia que existia no meio deles. As brigas começavam pelos “chefetes” que se atritavam constantemente”.

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Na ilha, nem tudo eram rosas. Divergências no coletivo não faltaram, sobretudo quando Getúlio resolveu construir um novo presídio e Nestor Veríssimo, dizendo-se “amigo” do coletivo, abriu voluntariado, oferecendo salários de acordo com a profissão de cada um, aos que quisessem trabalhar. Embora a maioria não quisesse construir presídios para eles mesmos, houve cisão. Os apelidados “trabalhistas” se revelaram. E segundo Bezerra “como ganhavam dinheiro, podiam comprar na cantina conservas, doces, queijos, linguiças, sardinhas, etc. E quando um companheiro pedia um “taquinho” de linguiça, de doce, uma fatia de salame ou um “tiquinho” de qualquer coisa, eles diziam: – Vai trabalhar vagabundo! Faz como a gente. Nós comemos conserva porque trabalhamos!”. A aventura acabou com a expulsão dos “trabalhistas” do alojamento dos comunistas.

E sobre “Tio Nestor”:

O coronel Nestor Veríssimo que teria participado da Coluna Prestes e se dizia antifascista e nosso amigo, era na verdade um getulista a toda prova. Mas com essa fachada de antifascista e de nosso amigo, ia nos embrulhando constantemente no fornecimento dos gêneros alimentícios, com atrasos propositais dos navios carregados de mantimentos para a ilha […]. De fato, há muito tempo que eu não via com bons olhos a conduta do Coronel Nestor Veríssimo em relação ao nosso coletivo. Ele estimulava abertamente o fracionismo em nosso meio, dava todo o apoio aos elementos divisionistas …Tudo isso me enchia de revolta! […] resolvi organizar um plano de fuga como protesto contra o governo fascista de Vargas e o diretor da ilha”.

Em meio ao Atlântico, a tentativa de fuga numa jangada naufragou. Bezerra ainda foi encerrado no Presídio da Rua Frei Caneca, no Rio de Janeiro, de onde aplaudiu a vitória das forças soviéticas na batalha de Stalingrado, contra a Alemanha nazista, antes de voltar a Fernando de Noronha e ser solto, em 1945.

         Outro preso do Estado Novo que nos deixou memórias foi Graciliano Ramos. Em outra ilha: a Grande, na baia de Angra dos Reis, no Rio de Janeiro. No começo de 1936, Graciliano era espionado, vigiado e perdeu o emprego. Tudo começou em Maceió, quando trabalhava como diretor da Imprensa Oficial e professor e diretor da Instrução Pública do estado. Em 1934, havia publicado o romance São Bernardo e quando se preparava para publicar o próximo, foi preso em decorrência do pânico insuflado por Getúlio Vargas após a Intentona Comunista.

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       Acusado de comunista, com a vida pessoal e profissional abaladas, julgando-se vítima de “depoimentos venenosos”, Graciliano Ramos afirma que “naquele momento a ideia da prisão dava-me quase prazer: via ali um princípio de liberdade. Eximira-me do parecer, do ofício, da estampilha, dos horríveis cumprimentos ao deputado ao senador, iria escapar a outras maçadas, gotas espessas, amargas, corrosivas […] A cadeia era o único lugar que me proporcionaria o mínimo de tranqüilidade necessária para corrigir o livro”. Ele preparava então seu romance, Angústia. A prisão sem acusação ou processo, não evitou a deportação.

         Depois de uns poucos dias preso em Recife, foi enviado para o complexo penitenciário da Rua Frei Caneca e internado no pavilhão dos Primários, na capital. Ali encontrou velhos amigos e fez novos. Começou a estudar russo, ouvia conferencias feitas por colegas e em carta à esposa Heloísa dizia ter alimentação regular e água, luz e ar em abundância. Sua queixa, os insetos.

Os percevejos da Detenção eram na verdade uma praga, e em vão, tentávamos saber onde se escondiam. No prédio novo, de muros lisos, chão encerado, parecia não haver ambiente para a medonha proliferação. Deviam alojar-se nos ferros das grades, nas juntas das camas, nas gretas dos guarda-ventos. Examinávamos pacientemente os lugares suspeitos, esmiuçávamos a roupa, as cobertas, os colchões, os travesseiros. Nenhum sinal dos miseráveis; durante o dia era possível esquecê-los, jogar xadrez, ler, escrever, ouvir discursos, lições, hinos, sambas. À noite, deixavam-nos repousar alguns minutos […] quando íamos adormecendo, uma ferroada nos despertava, sentíamos carreirinhas na pele, cócegas, comichões […] habituara-me depressa a acomodar os ossos no colchão. Agora, o tormento era aquele, picadas, o teimoso fervilhar”.

          Enquanto os dias passavam, sem notícias de libertação, comitês de mulheres de presos, entre as quais, sua esposa e a de Agildo Barata, moviam mundos e fundos para ter de volta seus companheiros. Levavam e traziam cartas e relatórios, estabeleciam contatos com parlamentares, personalidades, advogados, arrecadavam fundos, denunciavam maus tratos e apoiavam as famílias.

       O pânico tomou conta do Pavilhão dos Primários ao ser divulgada a lista dos prisioneiros transferidos para a Ilha Grande. A colônia correcional era sinônimo de violências, torturas e até assassinatos. Os que de lá voltavam eram “trastes”: corpos em chagas, cabeça raspada. Do Rio, os presos seguiram até Mangaratiba de trem.

        Como relata em Memórias do Cárcere, o desembarque foi tumultuado. Em fila, teve início a caminhada na direção da Colônia. Os que caíam eram açoitados pelos guardas. Com uma perna operada, Graciliano arrastou-se penosamente ao longo do caminho. Ao chegar, teve a cabeça raspada e os bens confiscados. Vagou em choque pelo galpão imundo onde serviam comida. Tudo era fedor, imundície. Passou dias sem se alimentar. Acreditou que iria morrer: dores, febres, náuseas, “abandonado no inferno”. Graças às ligações de outro escritor alagoano, José Lins do Rego com o irmão do general Aurélio Góis Monteiro, Graciliano voltou ao presídio da Rua Frei Caneca. E soturno, ruminava:

       “O mundo se tornava fascista. Num mundo assim, que futuro nos reservariam? Provavelmente não havia lugar para nós, éramos fantasmas, rolaríamos de cárcere em cárcere, findaríamos num campo de concentração. Nenhuma utilidade representávamos na ordem nova. Se nos largassem, vagaríamos tristes, inofensivos e desocupados, farrapos vivos, fantasmas prematuros; desejaríamos enlouquecer, recolhermo-nos ao hospício ou ter coragem de amarrar uma corda ao pescoço e dar o mergulho decisivo. Essas idéias, repetidas, vexavam-me; tanto me embrenhara nelas que me sentia inteiramente perdido.”

        Um pouco antes de entrar no trem que o levaria a Guaratiba, Graciliano comprou um jornal onde se estampava a manchete: “Estado de Guerra prorrogado por 90 dias”.

  • Baseado em “Histórias da Gente Brasileira: República 1889-1950 (vol. 3), de Mary del Priore, editora LeYa, 2017.
Ilha Grande

Presídio de Ilha Grande (RJ), arquivo Museu do Cárcere (reprodução)

 

 

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