AS LÉSBICAS NA HISTÓRIA DO BRASIL

Por Luiz Mott.

            “A homossexualidade é tão antiga quanto a própria humanidade”, dizia Goethe (1749-1832) – ele próprio incluído na lista dos personagens célebres que prestaram homenagem ao amor homoerótico. Sua afirmação – hoje em dia confirmada por antropólogos e historiadores – causou gran­de escândalo entre seus contemporâneos, pois ainda consideravam e trata­vam o homossexualismo como “abominável pecado de sodomia, tão horrí­vel que até o demônio foge de o praticar”, conforme diziam os teólogos da época.

            Para outros autores – ao menos no que se “refere à homossexualidade feminina – é no século VI antes de nossa era que o lesbianismo teve sua grande aparição histórica: na ilha grega de Lesbos, hoje chamada Mitilene, viveu a poetisa Safo, autora de nove livros de poemas que no século XI foram queimados em Roma pelo papa Gregório Vil, dos quais só nos res­taram fragmentos de algumas odes, os quais proclamam discretamente os encantos do amor entre mulheres. Eis sua pequena biografia tal qual foi pela primeira vez divulgada no Brasil, em 1894, pelo dr. Viveiros de Cas­tro, professor de Direito Criminal na Universidade do Rio de Janeiro: “Atribui-se geralmente a Safo a invenção do amor da mulher pela mulher, aborrecendo e desprezando as relações naturais com o homem. Apaixona­da louca e incestuosamente por seu irmão Charax, viu este fugir de seus braços, conquistado pelos encantos da cortesã egípcia Rodopis, e então, no despeito da derrota, no ódio pelo homem, procurou aliviar as exigências da sua carne e os ardores de seu sangue nos braços de outras mulheres. Não ocultou seu vício, cantou-o e celebrou-o em suas odes, ensinou-o e propagou-o pelas mulheres de Lesbos, que gostaram da invenção e a ela se entregaram de­senfreadamente. É por isto que as tríbades são também geralmente conhecidas por sáficas ou lésbias.”

         Desnecessário seria enfatizar o tom preconceituoso e simplista com que aquele ilustre criminalista se refere ao lesbianismo. O certo é que des­de Aristóteles inúmeros helenistas lastimam e amaldiçoam a intolerante foqueira que privou a humanidade de conhecer toda a obra da maior poetisa da antiguidade. O helenista inglês J. A. Symonds chegou a dizer que “o mundo não sofreu maior perda literária do que a perda dos poemas de Sa­fo”. Perderam-se os anéis, ficaram os dedos… e a semente do homo­erotismo feminino estava lançada. Tão forte foi a figura desta mulher que seu nome e o de sua ilha tor­naram-se sinônimos de homossexualidade feminina, como: amor sáfico, safismo, safista, amor lésbico, lesbianismo, lesbiana, lésbica.

           Tanto quanto a homossexualidade masculina, o lesbianismo sempre foi praticado por todos os povos estudados pelos cientistas sociais, haven­do mesmo sociedades que foram e ainda são francamente favoráveis e tolerantes às manifestações do amor entre iguais, outras que lhe são indife­rentes e em menor número algumas que hostilizam o homoerotismo: segundo os pesquisadores Ford & Beach, apenas 36% das sociedades – e en­tre essas lastimavelmente encontramos os participantes da tradição judai­co-cristã, hostis ao homossexualismo. Comportamento universal quer histórica, quer geograficamente, o lesbianismo já estava presente no Novo Mundo muitos milênios antes da chegada dos primeiros colonizadores. “A­ceita ou rechaçada, honrada ou castigada, a homossexualidade era pratica­da do Estreito de Behring ao de Magalhães” segundo a célebre expressão de um dos precursores dos estudos homofilicos nas três Américas, o vene­zuelano Antonio Requena (1945).

          Quando os portugueses chegaram ao Brasil, estarreceram-se não apenas com a beleza dos corpos bronzeados e das “naturas” rechonchudas das índias, mas sobretudo com a “devassidão” destes “selvagens”. Em 1587, assim escrevia Gabriel Soares de Sousa: “São os Tupinambá tão lu­xuriosos que não há pecado de sensualidade que não cometem. São muito afeiçoados ao pecado nefando (homossexualismo), entre os quais se não tem por afronta”. Além de nus, os índios e índias eram censurados pelos colonos mais católicos por praticarem a poligamia, o adultério, o incesto, a homossexualidade, sendo apontados como exímios conhecedores de po­derosos afrodisíacos e de práticas abortíferas. Chamavam os sodomitas, isto é, os homossexuais, de “tibira”, e o mesmo cronista informava que “nas aldeias pelo sertão há alguns tibira que têm tenda pública a quantos os querem como mulheres públicas”. Quer dizer: uma verdadeira institucio­nalização da prestação de serviços homoeróticos, tal como existia na mes­ma época no Oriente e inclusive no continente africano. Também institucionalizada na cultura tupinambá era a inversão sexual entre as mulheres.

          Eis como outro cronista, Gandavo, dá a primeira descrição do lesbianismo no Novo Mundo, no ano do Senhor de 1576: “Algumas índias há entre os Tupinambá que não conhecem homem algum de nenhuma qualidade, nem o consentirão, ainda que por isso as matem. Elas deixam todo o exercício de mulheres e imitam os homens e seguem seus ofícios como se não fossem fêmeas. Trazem os cabelos cortados, da mesma maneira que os machos, e vão à guerra com os seus arcos e flechas, e à caça, perseverando sempre na companhia dos homens. Cada uma tem mulher que a serve, e que lhe faz de comer e com quem diz que é casada. E assim se comunicam como mari­do e mulher”. Melhor descrição da prática do lesbianismo por estas ame­ríndias não poderíamos dispor, sobretudo lembrando que naquela época o “pecado contra a natureza” era crime punível com a morte na fogueira, portanto, assunto proibidíssimo não só na fala, como sobretudo na escrita dos cronistas. Não obstante a censura da Inquisição a tudo que se publica­va em Portugal, alguns cronistas revelam inquestionavelmente que também a homossexualidade feminina, além de muito praticada, assumia manifesta­ções fortemente institucionalizadas tanto no comportamento invertido – na fala, no corte do cabelo, na adoção de tarefas próprias ao sexo oposto, no casar-se com outra mulher de seu próprio sexo genital – quanto no status assumido por tais viragos sobretudo nas atividades guerreiras, a fonte principal da  ascensão social e prestígio desta sociedade ameríndia.

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        E para que não se ponha em dúvida a veracidade do depoimento de Gan­davo, lá vai outro observador, este Jesuíta, que por seus votos deveria es­tar isento de qualquer suspeita de invencionice: “Há entre os Tupinambá muitas mulheres que assim nas armas como em todas as outras coisas se­guem oficio de homens, e têm outras mulheres com quem são casadas. A maior injúria que lhes podem fazer é chamá-las de mulheres. Lésbicas ra­dicais, machistas ainda mais radicais: se vivessem em nossos dias, e em países mais liberais, certamente fariam amputação dos seios e implantação de pênis de silicone – para ser mais precisos, tais viragos não pertencem ao grupo das lésbicas, são transexuais, criaturas que, se tivessem condição de escolha, teriam optado não só pelo universo e estilo de vida do outro sexo mas inclusive pela genitália viril.

        Pesquisas antropológicas contemporâneas comprovam a prática do tribadismo entre muitas culturas ameríndias, tanto do Norte quanto do Sul de nosso continente. Assim sendo, documentação fidedigna de diversos cronistas comprova a presença da homossexualidade masculina e feminina entre nossos aborígenes desde os primórdios do contacto. Cai por terra, conseqüentemente, a hipótese de que o homoerotismo é um vício da civili­zação européia, sinal e símbolo da decadência da raça branca. Nossos “bons selvagens” há milênios já haviam descoberto as delícias do amor lés­bico e a prova de que a homossexualidade era tão praticada no Nordeste ­terra de cabra-macho – é que o nome indígena para a chamada “Baía da Traição” era nada menos que “tibira caiu tuba”, isto é, “cajual da sodomia” – uma espécie de paraíso terrestre gay em plena Paraíba do século XVI! Vem portanto de longe a inspiração para uma das músicas mais lésbicas de nosso cancioneiro: “Paraíba masculina, mulher macho, sim senhor!”

        Tão institucionalizada era a inversão lesbiana entre nossas tribos litorâneas que no Vocabulário da Língua Brasílica (1621) registravam os jesuítas – certamente a contragosto – um termo específico de como eram designadas as tais mulheres guerreiras entre os Tupinambá: ÇACOAÍBE­GUIRA, isto é, “machão que não conhece homem e tem mulher e fala e peleja como homem.” Não resta dúvida, portanto, que as “ÇACOAÍBE­GUIRAS” eram invertidas totais, verdadeiros machões no falar, trabalhar, lutar e matrimoniar. Salvo erro, desde o século XVII esta é a primeira vez que se publica este termo tupinambá – o complô do silêncio contra a ho­mossexualidade, assim como contra a história dos oprimidos, apenas agora começa a ser quebrado.

          Com a chegada dos colonizadores portugueses, as práticas homosse­xuais se ampliam e diversificam-se na Terra de Santa Cruz. Já em 1549 desembarca em Olinda o primeiro degredado condenado pelo crime de so­domia:chamava-se Estevam Redondo. Vejamos as raízes lusitanas do lesbianismo no Brasil. Em Portugal a homossexualidade feminina também revela-se tão antiga quanto a própria origem da nacionalidade de nossos ancestrais. Pro­va disto é que desde a Idade Média encontram-se referências ao amor en­tre mulheres nos velhos cancioneiros, notadamente no vetusto Cancioneiro da Vaticana, onde a canção nº1115 é dedicada a uma certa virago, Mari­mateu, que parece ter tido grande predileção pelos prazeres de Lesbos, pois dela dizia o cancioneiro Afonso de Cotam: “Tão desejosa sois de co­m, como eu” (cono, segundo o Dicionário de termos eróticos e afins, é vo­cábulo antigo, sinônimo de sexo da mulher, vagina). Também no Cancio­neiro Geral de Rezende encontram-se várias cantigas alusivas às relações homossexuais entre damas do paço, como os amores escandalosos de uma dama como Dona Guiomar de Castro: “Se sois macho e não sois dama, é muito bem que o digais… Confessai-nos que sois macho, e que outra da­ma folgais de beijar.”

         É contudo para as portuguesas e luso-brasileiras residentes na nova Colônia do Brasil que dispomos de mais informações sobre suas práticas sa­fistas, e isto graças aos livros das Denúncias e Confissões do Santo Ofício, pois a partir de 1591 a Inquisição esteve por diversas vezes devassando as princi­pais Capitanias do Nordeste, inquirindo e prendendo os acusados em pecados­-crimes contra a fé e a moral sexual. Foi sobretudo na Bahia onde os Inquisi­dores encontraram maior número de lésbicas, assim como as mais ousadas.

        A primeira a se confessar perante o Visitador foi Paula de Sequeira, aos 20 de agosto de 1591. Nascida em Lisboa, tinha então 40 anos. Disse que há 2 anos vinha recebendo cartas de amor de uma viúva chamada Felipa de Souza, com a qual trocara alguns abraços e beijos, chegando a ter “ajuntamento car­nal uma com outra, por diante, ajuntando seus vasos naturais (vaginas), tendo deleitação.” Acrescentou um detalhe, certamente mediante pergunta do In­quisidor: “Usava ela confessante, sempre do modo como se ela fora homem, pondo-se em cima. E que antes de ir para sua casa, lhe contou a dita Felipa de Souza que tinha pecado no dito modo com Paula Antunes, Maria de Peralto e com outras muitas mulheres e moças, altas e baixas, e também dentro de um mosteiro. E que em Salvador havia muita murmuração da muita conversação que a dita Felipa tinha com a dita Paula Antunes.” Embora culpada, mais acusou do que se inculpou.

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           Como o “nefando e abominável crime de sodomia” era passível de morte, imaginemos o pânico causado nestas mulheres denunciadas por Paula Siqueira, sabendo que seus nomes e seus abomináveis amores esta­vam anotados nos temidos cadernos dos Inquisidores. Como o Santo Ofí­cio mostrava-se misericordioso com os pecadores que tomassem iniciativa de se acusarem, certamente sabendo da confissão-denúncia da primeira lésbica a abrir o jogo com os Visitadores, outras safistas apresentam-se “espontâneamente” perante o Licenciado Furtado de Mendonça. Poucos dias depois é a vez de Maria Lourenço, 40 anos, casada. Disse que, estando na roça, a dita Felipa de Souza “se fechou em um quarto e lhe começou a falar muitos requebros e amores e palavras lascivas, melhor ainda do que se fora um rufião com sua amante. E lhe deu muitos abraços e beijos, e enfim a lançou sobre sua cama e estando ela confessante lançada de costas, a dita Felipa se deitou sobre ela de bruços com as fraldas ambas arregaça­das e assim com os seus vasos dianteiros ajuntados se estiveram ambas de­leitando até que a dita Felipa, que de cima estava, gozou”.

           Pelo visto, apesar dos ósculos e amplexos e palavras amatatórias, repetiam estas mulheres o mesmo costume e performance dos heterosse­xuais, limitando-se a desnudar o corpo apenas da cintura para baixo, conservando  o peito coberto. Uma performance sexual marcadamente genital. Outra a confessar-se foi Guiomar Pinheira, 38 anos, mameluca, filha de um português com uma índia escrava de Ilhéu, do Sul da Bahia. Contou que sendo menina, aos 8 anos de idade, por duas vezes a mulher do alcaide da vila de S. Jorge, Quitéria Sequa, “a tomou nos braços e a lançou em cima de uma cama e lhe alevantou a camisa e se pos encima, ajuntando seu vaso natural com o dela, fazendo como se fora homem com mulher, tendo deleitação.” Um caso de pedofilia lesbiana que a “paciente” ainda se lembrava apesar de ter acontecido há 30 anos passados!

          Também as adolescentes entregavam-se ao tribadismo: Maria Rangel e uma tal “Saboeira” tinham 13-14 anos quando, aproveitando-se de serem vizinhas, “estando sós em casa, fecharam a porta por dentro e se deitaram sobre uma cama e tiveram ambas o nefando ajuntamento carnal, ajuntando seus vasos um com o outro e assim se estiveram deleitando por espaço de 1/4 de hora.” Esta mesma Maria Rangel contou que no Porto, sua cidade natal, fizera o roçadinho com várias outras donzelas, suas idades variando de 12 a 16 anos. Já veio portanto escolada da terrinha. Detalhe curioso: hoje em dia, um dos termos empregados popularmente no Nordeste para designar uma lésbica é “saboeira”, numa alusão à fricção ou roçado de seus corpos quando no ato venéreo. Não é de todo improvável que o termo já fosse empregado no século XVI e que o apelido desta les­biana mirim refletisse de fato suas preferências e fama homoerótica. Em Coimbra, na mesma época, encontramos um sodomita que popularmente era cognominado de “Manoel Maricas”, uma alusão certa a seu comporta­mento amariconado.

         Também adolescente era Guiomar Piscara: tinha 12-13 anos quando na praia do Rio Vermelho teve “tão desonesta amizade com Mécia, negra Guiné de 18 anos, que duas ou três vezes em diferentes dias, se ajuntaram ambas, em pé, uma com a outra, com as fraldas afastadas, abraçando-se e combinando suas naturas e vasos dianteiros um com o outro e assim se de­leitavam.” Hoje, quatro séculos depois deste pueril roçadinho, no mesmo Rio Vermelho, na orla de Salvador, existe o badalado Teatro Maria Bethâ­nia, propriedade de um casal de lésbicas ultradiscretas mas comentadíssi­mas em toda a Bahia, aliás, como também é a fama dá primeira dama da música baiana, cuja homossexualidade há mais de 20 anos é assunto tam­bém muito comentado, inclusive pela imprensa, conforme divulgaremos mais adiante, ao tratarmos das lésbicas contemporâneas.

         Outra mameluca confessou-se de mesmo “vício” de suas ancestrais Tupinambá: Isabel Marquez tinha 10 anos quando teve “brincos desonestos” com sua vizinha Caterina Baroa, cinco anos mais velha: chegando ambas a tão torpe ajuntamento, fazendo exatamente o que inumeráveis meninos e meninas sempre praticaram desde todo o sempre: “ajuntaram seus vasos dianteiros como se fora homem com mulher.”

         Embora obsessivamente os Inquisidores indagassem a essas tríbades se utilizavam algum instrumento penetrante quando pecavam, nenhuma respondeu afirmativamente, sequer mencionando a língua ou o dedo como instrumento de prazer. Tudo nos leva a crer que tal silêncio relate verda­deira omissão da prática de outro desempenho erótico além dos beijos, abraços e fricção das partes genitais, pois no caso dos sodomitas masculi­nos, além da riqueza de detalhes do uso do dedo e língua nos atos sexuais, há referência a objetos penetrantes, como um nabo e a mão de um almofa­riz (pequeno pilão de bronze). Segundo o historiador Michel Foucault, na sua História da sexualidade, Inquisidores e Confessores deleitavam-se eles próprios ao ouvir os pecadores descreverem minuciosamente seus deleites pecaminosos, daí insistirem que nenhum detalhe fosse omitido, tal como a posição do coito, se estavam vestidos ou não, quantas vezes transaram, se houve deleitação.

           Não foi apenas na Bahia que as adeptas de Safo foram denunciadas à Inquisição: também em Pernambuco algumas mulheres foram incrimina­das por praticarem o “abominável pecado de sodomia”. Entre elas, outra mameluca, Maria Lucena, que foi vista duas vezes deitada sobre as índias Vitória e Margarida, escravas numa fazenda de Olinda, fazendo movi­mentos típicos das safistas. Logo que se perceberam descobertas por uma indiscreta “voyeurista”, diz o documento “que rogaram que se calasse”. Incorrigível, outra vez Maria Lucena foi denunciada, agora por uma índia sertaneja, Mônica, que disse viver entre os brancos desde que aos 4 anos de idade foi pilhada em sua aldeia. Disse mais, que a mameluca era infama­da de “dormir carnalmente com as negras da casa” e que ela própria, numa noite, foi espiá-la, encontrando Maria Lucena com Margarida “no chão, uma sobre a outra, fazendo movimentos e sinais como faz um homem com mulher, conhecendo ela denunciante bem estarem-se ambas tendo ajunta­mento carnal.” Sua reação foi típica de uma cristã intolerante: “não po­dendo sofrer aquela torpeza, cuspiu nelas, dizendo-lhes que não faziam aquilo, por falta de homens. E pela manhã lhe rogou Lucena que se calas­se.”

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         Finalizo estas referências às lésbicas da Bahia e Pernambuco nos úl­timos anos do primeiro século de nossa história, com outra denúncia de um “voyeur”. A 10 de novembro de 1593, o português Manuel Fernandes, la­vrador, 50 anos, disse que “foi espreitar por um buraco da porta da casa de seu vizinho, o preto Manoel Rey, e viu estar Maria Rois, casada, deitada de costas e sobre ela deitada de bruços Ana, moça parda, 11 ou 12 anos de idade, filha de seu vizinho, ambas com as fraldas arregaçadas, fazendo uma com a outra como se fossem homem com mulher.”

         Se tomarmos como referência os sodomitas masculinos, poderemos conjecturar que as devassas inquisitoriais não erradicaram de vez as práti­cas homoeróticas na novel colônia, pois no século seguinte dezenas de pessoas são novamente denunciadas, presas, processadas e sentenciadas pelo nefando pecado de sodomia. Entre elas, nada menos que dois gover­nadores, diversos sacerdotes, militares de alta e baixa patente, comercian­tes, escravos e índios. Segundo o filósofo Schopenhauer (1788-1860), essa tenaz resistência do homossexualismo, malgrado as cuspidas, a fogueira, os açoites, os campos de concentração, a Aids, prova que a homossexualidade é uma realidade imorredoura: “A universalidade absoluta e a indestrutibili­dade obstinada do fenômeno provam que a homossexualidade deriva da própria natureza.”

           Há quase mil anos que a legislação castiga o lesbianismo em Portu­gal: segundo o Prof. Asdrúbal Aguiar, da Universidade de Lisboa, um dos precursores dos estudos sobre a homossexualidade na Lusitânia, já no sé­culo XII adotava-se aí as Penitenciais de Angers e Fleury, nos quais se prescrevia três anos de penitência para as mulheres convencidas no pecado de sodomia: no caso de serem leigas, deviam permanecer um ano inteiro jejuando a pão e água, no caso das freiras, o castigo era ainda mais severo, pois devia ser misturada cinza na massa do pão. As coitadas deviam termi­nar as penitências magras como as prisioneiras dos campos de concentra­ção nazistas. É contudo através das Leis Extravagantes de 1499 que se de­fine claramente pela primeira vez em Portugal: “a mulher que usa torpe­mente como homem, haverá a mesma pena, que o homem que tal pecado com outro macho comete: deve ser queimada viva, reduzida a pó, seus bens sequestrados, seus descendentes tornados inábeis para que não ficasse delas memória.” O complô do silêncio contra os homossexuais de ambos os sexos começava por determinação do Estado, proibindo que se desse um túmulo para os culpados no pecado contra a natureza: na França e noutros países da Cristandade Ocidental era costume queimar-se junto com a lésbi­ca ou o sodomita o processo que os inculpou, perdendo por conseguinte inclusive o registro da execução.

         Nas Ordenações Manuelinas (1512) e nas Filipinas.(1603), o lesbia­nismo é novamente equiparado à sodomia entre homens, sendo passível de morte na fogueira. Não localizamos nos arquivos civis nenhuma referência à execução de safistas em Portugal: a lei era draconiana, a prática parece que foi mais tolerante. Quanto às leis eclesiásticas, é através dos Regimen­tos da Inquisição que a sodomia foi penalizada, embora não se refiram especificamente à “sodomia interfemina” até 1640, quando no Regimento de D. Francisco de Castro se determina pela primeira vez o castigo inquisitorial á mulher “compreendida no crime de sodomia”, subentendendo-se debaixo desta rubrica tanto a cópula anal heterossexual quanto o lesbismo propria­mente dito.

           1646 representa uma data capital na história das lésbicas do mundo luso-brasileiro, pois neste ano, aos 22 de março, o Conselho Geral da In­quisição de Lisboa decidiu que “o Santo Ofício não devia tomar conheci­mento dos atos sodomíticos entre mulheres”. Tal deliberação foi tomada após um século de existência do Terrível Tribunal, numa quadra em que os Inquisidores perseguiram cruelmente os homossexuais masculinos, levando à fogueira uma dezena de “fanchonos” só no ano de 1644. Assim sendo, somos forçados a concluir que em Portugal a homossexualidade feminina sempre gozou de muito maior clemência e tolerância do que a homosse­xualidade masculina: antes de 1646 raríssimos são os processos de mulhe­res-sodomitas existentes na Torre do Tombo, não havendo registro de ne­nhuma lésbica lusitana que tenha sido queimada pelos tribunais religiosos. A partir de 1646 a Inquisição deixa de perseguir o tríbadismo, apesar de manter a pena de morte aos homossexuais masculinos e o degredo às raras mulheres convencidas na prática da cópula anal heterossexual.

  • Texto extraído de “O Lesbianismo no Brasil”, de Luiz Mott. Porto Alegre, Editora Mercado Aberto, 1987.

tolouse-lautrec

“As duas amigas”, de Henri de Toulouse-Lautrec.

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