Higiene pessoal: banhos, banheiros e penicos

Apesar do higienismo de Oswaldo Cruz e Carlos Chagas ter se tornado uma questão de medicina social, a limpeza ainda não batia a todas em todas as portas. A maioria das casas, nas cidades ou áreas rurais, não recebia água encanada e eram providas de fossa precária. Em pesquisa recente, Verena Alberti localizou residências com esgoto em percentuais muito reduzidos nos estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul. Somente a partir de 1950, iriam se registrar mudanças e, ainda assim, modestas. Nas regiões rurais que continham 64% da população só 1,4 dos domicílios teriam água encanada e nas cidades, somente, 39,5.

Sem água, portanto, a boa aparência física, resultado do “corpo moderno”, limpo e higienizado, ainda não se democratizara. Havia muita gente que considerava o banho um “mal necessário” no qual se lavava “mais ou menos” o corpo, como assinalou José Itabir Kandratovich. As crianças se lavavam nas águas umas das outras e os últimos, coitados, em água de enxurrada. O mesmo memorialista conta que, no interior de Minas Gerais, se guardavam os costumes do período colonial: durante a semana, lavavam-se só o rosto e os pés na hora de dormir. O banho de corpo inteiro só aos sábados e os cabelos das mulheres eram lavados uma vez por mês. Em pleno século XX, muitos ainda acreditavam que o banho fazia mal a saúde.

Tal como as cozinhas modernas, os aparelhos sanitários e banheiras eram mais vistos nos anúncios de revista do que nos domicílios. Idem quanto aos metais, louças e azulejos que irradiavam sensação de beleza e funcionalidade. Como resolver o problema? Na primeira metade do século XX, na falta de “salas de banho” e mesmo água, tomou-se muito banho de rio. E não era brincadeira, mas hábito para se manter limpo. Quem conta é José Lemos de Sant´Ana:

Aí pelos meus três ou quatro anos, mamãe deixou que Sinhá Maria me levasse com ela para tomar banho no rio. No banheiro das mulheres. É, pois havia banheiro para os homens como o «chupa caroço» e o «poço das tainhas», e banheiros para as mulheres a um dos quais se ia pela Rua Nova. Pois é, comecei frequentando o banheiro das mulheres, todas as tardes, acompanhado de Sinhá Maria. Lembro-me bem que logo à saída da casa, tirava a roupa e, ia em pelo, em todo o trajeto da Rua Nova, o que para mim era melhor, com o calor do verão. Achava natural tomar banho e ver tanta mulher nua lá no rio e não prestava atenção especial a essa ou àquela, velha ou nova, de modo que não ficou em minha mente nenhum desses aspectos que meus olhos viam com tanta naturalidade. Uma exceção porém: até hoje tenho diante dos olhos uma mulata, nova, que após deixar toda a sua roupa na areia correu para o rio com a mão direita sobre o e o antebraço e mão esquerdos tentando cobrir os bicos dos seios. Eu que estava à beira da água e via entrarem e saírem tantas mulheres de todas as idades, diariamente, sem dar qualquer importância, até hoje não pude esquecer essa pudica figura. Não me lembro particularmente de qualquer outra. Não sei que sentimentos se me apossaram naquele instante, sei porém que toda vez que me lembro do fato, sinto que há sensualidade.

Não sei se existe ainda atualmente algum lugar na Bahia, ou no Brasil, onde as pessoas do mesmo sexo tomem banho juntas completamente nuas, sem que se sintam feridos nos seus pudores. É verdade que muitas senhoras só se banhavam usando camisolas e não iam ao rio diariamente, mas de vez em quando para provar do prazer, tomando seu banho normalmente de bacia e caneca, em casa. Não era assim vovó Mariquinha que, diariamente, cinco horas da manhã ia, com a empregada, tomar seu banho. E o rio passava pertinho do fundo do quintal de sua casa. Senhoras havia que jamais foram a um banho de rio. Mas as mulheres das classes mais pobres e as jovens de todas as classes, essas não dispensavam o seu banho, nuas em pêlo, as brincadeiras dentro da água e os mergulhos do galho da ingazeira” (…).

 

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O banho de bacia, segundo Moacyr Scliar, também foi muito usado no Rio Grande do Sul: “Como outras casas do bairro, carecia de confortos elementares. Não tínhamos água quente, por exemplo. Para o banho, nem sempre diário (o que admito constrangido, dada a minha condição de homem da saúde pública), minha mãe esquentava água numa grande lata de azeite Sol Levante. E não a esquentava no fogão à gás ou elétrico.; o que tínhamos era um fogão à lenha. Quem já tentou acender o fogo numa manhã de inverno, com lenha úmida, sabe que isto é o que mais se aproxima de uma missão impossível”.

O acesso difícil à água fazia da bacia, barris e tanques a aliada de crianças miúdas e doentes.

A água de gasto – água mais barata, não potável, que vinha de fontes mais perto – era posta em depósitos no quintal, junto à parede da sala de jantar: barris abertos em cima, porrões, dornas velhas, tachas ou mesmo tanques de tijolo e cimento, conforme as posses. Muitas casas possuíam cisterna funda no quintal, para pegar uma água de gasto melhor no lençol de areia subterrâneo, a quatro ou cinco metros de profundidade. Era água para banho e lavagem de roupa, utensílios e chão. Só não servia para beber. Aí se executava a lavagem de muita coisa inclusive pratos, só não penico que era lavado lá mais para baixo no fim da cerca. Daí saia um rego para escorrer para longe, até onde a terra chupasse a água servida. Pois era junto ao depósito de água de gasto ou junto à cisterna que menino pequeno, no verão, não estando doente, tomava banho. Se pequenininho, não sendo mais de peito, na gamela ou na bacia, se já andando, em pé sobre a tábua ou o calçamento existente, de caneco. No inverno banho era dentro de casa, banho de caneco, aparada a água usada em bacia para jogar fora depois. Menino doente, banho morno e ligeiro sem molhar a cabeça, que faz mal,

            – Deixa tirar a remela desses olhos, menino! – dizia Binhá Maria dando banho. – O sabão arde.

            -Ande! Que eu não tou aqui pra abuso! Você quer virar bicho?

–           Deixa enxugar direito! Calce agora os tamancos” – registrou Sant´Ana.

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A bacia, mas também o penico era usado em toda a parte e por todo o tipo de gente, não só imigrantes pobres. Humberto de Campos anotou sobre o grande geógrafo e médico maranhense Justo Jansen Ferreira: “O Justo só tomava banho de água morna, em quarto fechado, no qual se conservava até duas horas depois do banho. E quando entrava na água, tapava os ouvidos com algodão. Ele não sentava no urinol ou na sentina, sem forrar o assento, em torno, com pano.”

O atraso era grande e o desaparecimento do penico, da latrina de batril ou do tigre estava longe de ser decretado. Como lembra o escritor Pedro Nava, usava-se muito o “cagadouro pensil” e as “casinhas”, ambos perto dos chiqueiros, até mesmo nas cidades. Em Recife, 1924, o tio de Gilberto Freyre “Ia meio nu, porém de botas de cavaleiro, defecar nas bananeiras”. Gregório Bezerra, por sua vez, muito jovem empregado na casa de um rico fazendeiro, tinha por função esvaziar nas privadas dos moderníssimos banheiros, os penicos que ainda eram usados. E Otávio Gomes a lembrar que a beira do Botas, onde morava “Quando os banhistas se acocoravam para fazer suas necedades fisiológicas na beira do rio, as piracanjubas vinham disputar os excrementos para comer, e dando borrifadas de água nos seus traseiros” – um chuveirinho ecológico!

Ao visitar o amigo Coelho Neto, bastante adoentado, Humberto de Campos se chocou, não com a presença do penico. Mas com a do seu conteúdo: “puxo a cadeira para junto da janela. A verdade, porém, é que não suporto o cheiro que enche o quarto e que me parece vir do criado-mudo ou de algum urinol, deixado debaixo da cama. O fétido é intolerável e uma censura surda se forma em meu espírito contra os que permitiam a permanência de um vaso cheio, no quarto de um enfermo”. As sensibilidades olfativas se aprimoravam.

Mas não foi só o banho, introduzido como obrigatório. Tônicos, modeladores, elixires e até aparelhos elétricos imprescindíveis na construção de uma nova individualidade, como sugeriu Nicolau Sevcenko, existiam. Mas, não eram usados por todos. Menos, ainda, cremes, loções, pomadas, emplastros, sabonetes, xampus e tinturas que serviam no “apuro da higiene corpórea”, estampados nos reclames de revistas, porém, custosos.

Eduardo Bueno, autor, entre nós, de livro pioneiro sobre higiene pessoal esclarece: quem exportou a idéia de um alto padrão de higiene pessoal foram os americanos, após a II Guerra Mundial. Padrão esse, não só transformado em obsessão nacional como multiplicado em objetos de consumo. Estar limpo, desodorizado, escovado não só impulsionava a ascensão social como inseria o usuário de escovas de dente, sabonete e outros no “american way of life”. Os americanos inventaram os banheiros modernos, a maior parte dos produtos de higiene pessoal, a necessidade de um, dois ou mais banhos por dia. E disso fizeram, conclui Bueno, uma indústria influente. O novo modelo de banheiro com chuveiro, vaso sanitário e banheiro, assim como os canos para condução da água, vem dos EUA. E o banheiro se tornou uma espécie de santuário da privacidade, no qual as pessoas se refugiavam para relaxar da vida moderna. Se relaxassem sentados, podiam contar com a ajuda do papel higiênico, difundido pela firma Scott Paper e pioneira na área. A maior dificuldade era convencer os clientes a pagar por um papel que depois de sujo, ainda seria jogado fora. Houve outras: dificuldade de fazer propaganda e pontos de venda que, por pudor, se recusavam a comercializar o produto.

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Pedro Nava se recorda que no internato Pedro II, onde estudou e morou, “o latrineiro” era implacável: “só dava a cada candidato três folhas de papel higiênico. Em situação normal, com muita economia, com esmero e dobrando cada folha duas vezes – eram três limpadelas vezes três nove e estava certo. Mas nos dias de diarréia aquilo só dava para início de conversa. E era inútil argumentar”. A economia era obrigatória! A idéia só vingou depois que a empresa passou a comercializá-lo em rolos.

O banheiro era um lugar de privacidade apenas em tese. Seu usuário estava sempre sujeito ao voyeurismo, sobretudo quando jovens moravam juntos. Para “ver mulher nua”, nada melhor do que olhar pela fechadura da porta ou buracos na parede, como gravou Nelson Rodrigues em conversa com um amigo:

Moramos numa casa velha, na Tijuca. Perto de onde morou um almirante. Não me lembro do nome: um almirante.E ele, baixo, crispado: “Então, fiz o seguinte. Subi no forro e abri um buraco em cima do banheiro.” Parou, espiando a minha reação; repetiu: “Bem em cima do banheiro.” Limpa um pigarro e continua: “Se vê tudo, percebeu? Tudo. Subo lá, de manhã; quando as minhas irmãs vão tomar banho […]”Queres ir lá? Olha: tu vais e eu faço outro buraco no forro. Dormes lá e, de manhã, subimos e já sabe.”

Sabões, embora raros e existentes desde o período colonial, e fabricados caseiramente até a autorização dada por D. João VI para a abertura de fábricas, só se impõem no século XX.  Em 1913, o italiano José Milani, radicado em São Paulo, lançou o sabonete Gessy. O sucesso foi tão grande que a firma se fundiria mais a frente com a poderosa Lever, fundada em 1884, na Inglaterra. Seu negócio: sabonetes.

Em 1946, os ingleses lançaram no Brasil o sabonete-desodorante Lifebuoy que passou a concorrer com o Vale quanto Pesa ou o Eucalol. Nascia a campanha publicitária que divulgou o termo Cheiro de Corpo ou C.C e criou o boneco “o tal”, sempre escorraçado por cheirar mal. Programas de rádio eram patrocinados por marcas de sabonete e “a mulher dos anos dourados” não dispensava Cashmere Bouquet e Palmolive.

Antes de o produto industrializado dominar o mercado consumidor, Pedro Nava viu sua mãe fabricar muito sabonete líquido Aseptol, para vender entre amigos. A fórmula vinha de um tio e o rótulo indicava: “soberano na anti-sepsia operatória/ o melhor e mais perfumado para a barba, preparado por Viúva Nava”. A teriaga fervia em grandes latas de querosene sobre trempes, no quintal, e eu gostava de alimentar o fogo, de engarrafinhar depois, e colar os rótulos e os timbres. Dava dinheiro e os arredores inteiros lavavam-se com a milagrosa panaceia”.

  • “Histórias da Gente Brasileira: República 1889-1950 (vol.3), de Mary del Priore. Editora LeYa, 2017.

 

“Jovem seminua”, de Oscar Pereira da Silva.

“Jovem seminua”, de Oscar Pereira da Silva.

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