Higiene, odor e prazer

Hábitos de higiene, hoje associados ao prazer físico, eram inexistentes. Entre os habitantes da América portuguesa, a sujeira esteve mais presente do que a limpeza. E isso, durante séculos. O viajante inglês John Luccock, no início do século XIX, ainda afirmava que as abluções frequentes não eram “nada apreciadas pelos homens. Os pés são geralmente a parte mais limpa das pessoas. Os rostos, mãos, braços, peitos e pernas que, todos eles andam muito expostos em ambos os sexos, raramente recebem a benção de uma lavada […] os cubículos em que se acham os leitos raramente são abertos à influência purificadora do ar livre, nem tampouco expostas ao sol as camas, embora úmidas de suor”.

A sensibilidade olfativa dos colonos estava longe daquela que já se instalara na Europa, junto com a preocupação de “oxigenar os ares” e de banir definitivamente o mau cheiro. Tal movimento suscitava a intolerância em relação aos odores do corpo que entre nós ainda eram plenamente admitidos. Teóricos já advertiam para os riscos da gordura tapar os poros, retendo “humores” maléficos e imundícies”, das quais a pele já estava carregada. A película nauseabunda que os antigos acreditavam, funcionar como um verniz protetor contra doenças, na verdade bloqueava as trocas “aéreas” necessárias ao organismo.

Essa mudança provocou uma passagem da natureza ao artifício. Os perfumes que remetiam aos adores animais – âmbar, almíscar – saíram de moda por sua violência. Antes, as mulheres os utilizavam, não para mascarar seu cheiro, mas para sublinhá-lo. Havia nele um papel sexual que acentuava a ligação entre as partes íntimas e o odor. Na Europa “civilizada”, a emergência de uma nova forma de pudor, porém, ameaçava esta tradição, substituindo-a por exalações delicadas à base de lavanda e rosas. O bidê foi então introduzido na França, tornando-se o auxiliar do prazer. As abluções femininas se revestiam de erotismo. Os talcos perfumados e outros pós, à base de íris, flor de laranjeira e canela, cobriam as partes íntimas. Um simples perfume aguçava a consciência de si, aumentando o espaço entre o próprio cheiro, e o dos outros: multidão fedorenta. O odor forte, considerado um arcaísmo, se tornou coisa de roceiras e prostitutas velhas.

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Entre nós, o âmbito da higiene íntima feminina, de difícil pesquisa histórica, foi brevemente abordado pelo poeta baiano Gregório de Matos. No final do século XVII, ele escreveu sobre a carga erótica do “cheiro de mulher”. Sim, cheiros íntimos agradavam: o do almíscar era um deles. O poeta criticou uma mulher que o seduzira apesar de lavar a vagina antes do ato sexual, maldizendo as que queriam ser “lavandeiras do seu cu”. Certa carga de erotismo dependia do equilíbrio entre odor e abluções, embora houvesse muitos, como o Boca do Inferno, que preferissem o sexo feminino recendendo a “olha” e sabendo a “sainete”. O cheiro de almíscar ainda agradava por estes lados do Atlântico onde o bidet só aportou no século XIX.

Mas lavar o corpo, com quê? Um pedaço de sabão era bem inestimável. Que o diga certo Baltasar Dias, em 1618. Ao ver que fora roubado do seu, trazido com dificuldade na caravela que o trazia da cidade do Porto para Pernambuco, deu de “dizer palavras de cólera e que o Diabo o levasse de seu corpo”, numa explosão de rara fúria. Conclusão? Foi denunciado à Inquisição por blasfêmia.

Embora longe da higienização de nossos dias, certa sensibilidade ao cheiro do corpo já estava instalada. Os processos de divórcio apresentados à Igreja católica revelam traços da intolerância de certos cônjuges em função do odor. O mau cheiro impedia suas relações sexuais. Em São Paulo, na segunda metade do século XVIII, por exemplo, Ana Luísa Meneses acusava o cônjuge de “pitar tabaco de fumo”, que conferia-lhe um “terrível hálito que se faz insuportável a quem dele participa”. Enquanto Maria Leite Conceição reclamava dos “pés e pernas inchadas” do seu, “das quais exalava um mau cheiro insuportável”. Como se vê, o embate conjugal não passava longe de alguns critérios de sensibilidade feminina. – Mary del Priore

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“O banho de Diana”, de François Clouet.

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