Felizes para sempre…

“E os príncipes se casaram, tiveram muitos filhos e foram felizes para sempre”. Será? Em nossa história, a sonhada harmonia, só nos contos de fadas. Nossas famílias nunca foram tão certinhas. Se formos examinar os documentos sobre a história do Brasil vamos ver que, em quinhentos anos, diferentes tipos de família se formaram. Os portugueses trouxeram para o Novo Mundo uma maneira particular de organizá-la. Esse modelo, constituído por pai e mãe “casados perante a Igreja”, correspondia aos ideais definidos pela Igreja católica no Concílio de Trento, servindo como instrumento na difusão do catolicismo no Novo Mundo.

Mas o europeu conseguiu impor esse tipo de família aqui? Sim e não. Para Gilberto Freyre, a família foi o mais importante fator de colonização. Ela era a unidade produtiva que abria espaços na mata, instalava fazendas, comprava escravos, bois e instrumentos. Nas áreas de monocultura, agia de forma mais eficiente para o desbravamento e transformação da terra do que qualquer companhia de comércio. Era a autoridade patriarcal que garantia a união entre parentes, a obediência dos escravos e a influência política de um grupo familiar sobre os demais. Uma grande família reunida em torno de um chefe, pai e senhor forte e temido impunha a sua lei e a sua ordem nos domínios que lhe pertenciam.

Esta não era, contudo, a realidade da maior parte da população. Ela era formada por famílias, baseadas em ligações transitórias e consensuais de homens e mulheres livres, pobres e escravos cuja necessidade de estabilidade a fazia muito semelhante à família patriarcal, mas onde o casamento legal era raríssimo Viver numa família onde faltara a benção do padre e o casamento na igreja não queria absolutamente dizer viver na precariedade. As ligações, então chamadas de concubinárias, em que as pessoas viviam juntas sem estar casadas perante a Igreja, podiam ser e eram muito estáveis. Havia consenso entre os companheiros. O que era precário era a situação material dessas famílias e a obrigação de muitos homens terem que abandonar suas mulheres para ganhar a vida longe de casa. Mas a estima, o respeito e a solidariedade eram características que se encontravam tanto num tipo de família, quanto no outro. Assim como as tensões ou violências, presentes, em ambas, também. As “uniões à moda da terra” – nome que na época também se dava aos amancebamentos – vão originar famílias mestiças. As pessoas se escolhiam por que se gostavam, passando a trabalhar juntas e a ter filhos. Muitas delas, só no final da vida recorriam a Igreja para casar, pois tinham medo de ir para o inferno. Aí chamavam um padre, pediam a extrema-unção e confessavam os seus pecados, inclusive o de ter vivido com alguém “fora do sagrado matrimônio”.

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Outra razão para as famílias não se constituírem a partir do casamento foi o preço da cerimônia. Casar custava uma fortuna, além de ser uma trabalheira para conseguir todos os papéis exigidos. O pior é que as pessoas eram perseguidas quando não contraíam matrimônio na frente do padre. Por isso, muitos casais pobres pediam licença às autoridades para esmolar. Os noivos alegavam ser “sumamente pobres” para pagar as despesas do casamento. Com as esmolas recebidas pretendiam quitar as dívidas contraídas na intenção de pagar os “banhos”.

Algumas marcas do passado sobrevivem: a família continua sendo a correia de transmissão de valores e tradições. É ainda “em casa” que aprendemos sobre o certo e o errado, sobre nossa cultura e nosso passado. Ela é também uma forma de poder. Pais deputados conseguem eleger filhos e netos, perpetuando sua influência política. Encontramos também aquelas, onde o papel dos “agregados” – padrinhos e madrinhas, afilhados, parentes pobres – ainda é muito forte assim como as chefiadas por mulheres independentes com seus filhos, uma velha tradição no país. Se compararmos, contudo, nosso tempo, com o do triunfo conjugal do início do século XX, vemos as mudanças. A baixa dos índices de natalidade, o aumento de casais e de nascimentos fora do casamento, o aumento do número de divórcios apontam modificações. A maior delas, contudo, é a simbólica. Está havendo uma brutal individualização da família. Nela assistimos à passagem do grupo ao indivíduo. E ele se constitui na célula base da sociedade, enquanto a família deixou de ser um grupo pré-definido para se transformar numa rede desenhada por trocas individuais, cada vez mais autônomas e eletivas. O surgimento de uma família caracterizada pelo apagamento das diferenças de sexo e de idade comprova a individualização das relações familiares.  E ela gera duas correntes: dos que dizem que a família está recuando, resultado de uma cultura fundada na defesa dos interesses pessoais e do egoísmo ambiente. E outra que defende a capacidade do individualismo em valorizar escolhas capazes de fazer do Outro, uma fonte de realização de si. Esta nova ordem sentimental repousa menos sobre valores coletivos e mais na aspiração profundamente individual de construir uma identidade.  A fidelidade incondicional de outrora é aí trocada pela fidelidade enquanto se ama. De juramento solene, ela passa a consciência do provisório.

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E amanhã? A família continuará a existir? Os historiadores dizem que a modernização das sociedades não é feita contra a família, mas com a família. As crises matrimoniais poderiam representar um risco para as famílias? Ao contrário, elas parecem reforçar os laços de parentesco que unem avós e netos, sobrinhos e tios em torno mães ou pais que tenham que criar, sozinhos, os seus filhos. Se a família, hoje, se funda sobre escolhas eletivas e temporárias, e o desejo dos indivíduos é o seu fundamento, ela, não pode, todavia ser separada da sociedade, da qual é, ao mesmo tempo produto e suporte. A busca de continuidade é um dos grandes desafios da humanidade e cada homem, ou cada mulher, possui o mesmo desejo de garantir sua descendência.- Mary del Priore

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O jantar no Brasil, de Debret.

2 Comentários

  1. Gerlon

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