E se D. João não tivesse vindo para o Brasil em 1808?

José Murilo de Carvalho afirmou que “Se D. João tivesse decidido ficar em Portugal, o Brasil, com certeza, não existiria” e teríamos, no lugar da unidade, “cinco ou seis países distinto”. Esta é uma questão importante que segue sem resposta definitiva, assim como tantas outras referentes à conjuntura de 1808. Na verdade, a historiografia universitária vem se orientando em múltiplas direções, renovando campos e explorando novas abordagens e objetos. Assistimos ao apagamento da história econômica e social, herdada dos Annalles, e da história quantitativa dos anos 70, em favor da história cultural, da história política e, mais recentemente, de histórias fragmentárias, fundadas sobre biografias, indícios e arquivos novos ou revisitados. Estas conquistas são importantes. Mas é importante lembrar que são conquistas isoladas. No sudeste, fazemos uma história do Brasil; uma história excludente e seletiva, ditada pelos interesses de hegemônicos centros acadêmicos. Há neles vários grupos de historiadores que, há muito, invocam tradições, constituem escolas, praticam ritos de incorporação e exclusão consolidando, o que é normal: espaços de poder e influência numa disciplina que é tanto uma prática social, quanto científica. No sudeste, contudo, raros grupos se preocupam em pensar outras regiões do Brasil. No Rio, nos esquecemos de Goiás. Em São Paulo, do Amapá. Em Minas do Piauí ou Maranhão. Seguimos, impávidos, fazendo a história do Brasil sem levar em conta terras e gente que continuamos ignorando. Pior, sem conhecer a história do espaço amazônico, nordestino ou do centro-oeste, continuamos sem compreender como  as condições materiais de vida moldaram, física e mentalmente, seus habitantes, pois, envolvidos com o estudo do homem no tempo em territórios muito próximos, esquecemos de pensar a vida dos indivíduos em espaço radicalmente diverso do nosso. Penso que a valorização deste tipo de estudo nos ajudará a ampliar a produção sobre a história de regiões que participaram ativamente à construção histórica sem que delas se encontrem marcas na produção historiográfica mais visível. Para sabermos como se constituiriam, ou não, tais “cinco ou seis países distintos” é preciso, portanto, integrar a produção dos nosso colegas do Nordeste, da Amazônia e do Centro-Oeste, perguntando-nos qual o impacto, nestas regiões, da vinda dos Bragança para o Brasil, que aspectos positivos ou negativos desta mudança ai se forjaram, que desdobramentos a presença da Corte causou em regiões tão longínquas ou o que nos contam os arquivos regionais. Sem a integração destas informações, a questão continuará em aberto.

A ideia de transferir a Corte para o Brasil estava, há muito tempo, em pauta em Portugal, para, segundo alguns historiadores, garantir a renovação da importância imperial portuguesa, então em declínio. Kirsten Schultz, em seu Tropical Versailles, observa que “mesmo que a transferência da corte tenha sido uma tragédia para Portugal, no plano maior da monarquia, império e nação, foi um triunfo”.  A obra de Schultz contempla ambos os lados da história: positivo para o Brasil e para Portugal. Tal tendência, muito atual, é alimentada pelo relativismo que entrou nas análises históricas por meio da antropologia. É importante lembrar, contudo, que o que valoriza um trabalho de pesquisa histórica, é menos a resposta, e mais a pergunta que se coloca à documentação. Deste ponto de vista é menos importante definir se foi “fuga” ou transmigração e mais interessante analisar seus efeitos e desdobramentos. Renomados historiadores se detiveram  em analisar aspectos ideológicos, políticos ou socioeconômicos de um processo no qual o que se discutia era a unidade da América portuguesa, a estabilidade do regime e sua capacidade em manter suas instituições intocadas. Apoiada na abordagem dos estudos sobre cultura política, Schultz inovou nos problemas com o qual interroga os arquivos: como a Corte mudou e se adaptou no dia a dia? Como o exílio levou a remodelagem e reconstrução da monarquia portuguesa numa era revolucionária e, paradoxalmente, numa sociedade escravista? Como os discursos políticos incorporaram os desafios do tempo se refletindo na fisionomia da cidade, nos usos de festas e outros simbolismos reais? Como se deu o aumento da repressão e qual a percepção que se tinha, então, de pobres e escravos? O livro marca uma competente contribuição ao contexto historiográfico, apontando novos caminhos para os pesquisadores.

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É sabido que a transmigração da Corte, de Lisboa para o Rio de Janeiro provocou transformações significativas na evolução econômica, na vida social e cultural e na estrutura da colônia. Algumas delas atingiram a fundo à sociedade, especialmente no que diz respeito ao poder central, sendo a maior preocupação a de perpetuar no Brasil a estrutura do governo centralizado e o sistema absoluto da monarquia portuguesa. Mas, não só. Outros aspectos da vida de pequenos atores anônimos da história foram, pouco a pouco, sendo modificados por esta – pelo menos para eles – “inesperada” viagem. Foram raros os estudos realizados sobre a vida cotidiana neste período para que pudéssemos constatar o impacto que significou uma tal ruptura no horizonte dos personagens locais e de seu dia-a-dia. Afinal, num certo março de 1808, a Colônia amanheceu Metrópole. Mestiçou-se mais ainda. Para usar um conceito caro a Serge Gruzinski, a colônia globalizou-se. A Europa se fundiu mais ainda à América, já africanizada. Teve início um processo cujas marcas, mais tarde, colocariam em cheque as relações do Brasil com Portugal. Viveu-se a partir de então, uma aceleração das comunicações, uma evolução das técnicas, um encontro de novos atores urbanos que pouco a pouco mudou a cara da cidade e de seus habitantes. É bom que se diga que ao desembarcar no Rio de Janeiro, os Bragança encontraram uma cidade que era, então, considerada um dos portos coloniais mais bem localizados do mundo. As facilidades de intercâmbio com a Europa, América, África, Índias Orientais e as Ilhas dos Mares do Sul indicavam, – segundo o Marques de Alorna, veador da Casa Real, – um grande elo de união entre o comércio das variadas regiões do globo. Dominando vastos recursos, precisava apenas de um governo eficiente, que lhe desse prestígio político. E para gerir este governo, podia-se contar com inúmeros brasileiros que tinham feito seus estudos em Coimbra, pertenciam ao quadro burocrático da metrópole e também às elites locais, configurando um elo de ligação entre os dois lados do Atlântico. A transmigração parecia consolidar o sonho do renomado marechal-de-campo e conselheiro de D. João. Mas, – vale sublinhar – D. João e sua Corte não encontraram aqui uma tabula rasa. E ambas as partes – monarca e súditos anônimos – se integraram, tanto nas representações que faziam uma da outra, quanto nas realidades materiais que tiveram que enfrentar. Só podemos entender o rei, ou outros atores históricos, dentre deste jogo de tensões e adaptações.

Evaldo Cabral de Mello, em num livro notável, A outra Independência – o federalismo pernambucano de 1817 a 1824, reabilitou a história política, considerada, por muito tempo, menos nobre, porque entrincheirada numa espécie de positivismo despido de qualquer renovação epistemológica. Pois ele a renova. Atento à singularidade dos fatos e ao peso das circunstâncias, ele desenrola aos olhos do leitor, um enorme painel onde se movem centenas de personagens históricos, desconhecidos da maior parte dos historiadores do Sudeste. São atores de uma história do Nordeste que a maior parte de nós jamais ouviu falar.  E deles, o autor extrai questões nevrálgicas para o entendimento do episódio: os problemas de participação dos diferentes grupos sociais, o papel de cada um dos atores ou dos grupos de pressão, as regras da política local e da violência política, os vários sentidos do federalismo nos primórdios do Império. O que o preocupa é o estudo das tensões, dos antagonismos,  e dos conflitos que decorrem da repartição de um projeto regional e da disputa por sua autoridade.

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Entre 1820 e 22, elites como a pernambucana, tiveram sérias dúvidas  em relação aos projetos políticos que se esboçavam, de um e de outro lado do Atlântico. E por quê? Pois a Revolução do Porto contara com representantes coloniais, eleitos nas diversas províncias. Estas, por sua vez, foram recompensadas com a possibilidade de eleger juntas governativas que lhes davam controle sobre o sistema político e sobre as rendas internas de suas ex-capitanias. É aqui que entra o brilho do autor. Ele conta como este processo – um longo, denso e tenso processo – foi vivido por diferentes grupos alguns desejosos de integrar o Império que se estenderia da Amazônia ao Sul, outros resistindo à centralização conduzida pela Corte, no então, distante Rio de Janeiro. Pernambuco era, então, uma província pujante. Eram excelentes as receitas de sua alfândega, que a exportação do algodão só fizera crescer. Na outra ponta, inchava uma Corte parasita, cujas necessidades de dinheiro se traduziam em drenar a riqueza das províncias do Norte.  Seu monstruoso apetite só deixava espaço para uma conclusão: a metrópole não estava mais em Lisboa, mas no Rio! As lembranças da “revolução” de 1817, primeiro movimento de basta à centralização proposta por D. João VI, ainda estava fresca. O ódio aos portugueses, a paixão pela autonomia e o crescimento das idéias republicanas, era coisa antiga entre pernambucanos. Deslocando seu olhar da Corte para Pernambuco, ou seja, mudando o lugar de onde examina seu objeto e somando a esta iniciativa o profundo conhecimento que possui sobre documentação regional, Cabral de Mello comprova que a onda liberal era bem visível no Nordeste. E que a Independência calou sua agenda: uma agenda republicana, abolicionista, federativa.

Desde os primeiros anos da colonização as ligações pessoais e os laços familiares entre senhores de engenhos de açúcar e funcionários do governo português favoreciam o mau funcionamento da máquina administrativa. Quando petições e pedidos de auxílio financeiro esbarravam na inércia político-administrativo metropolitana, tentava-se conseguir, pela corrupção, influenciar ou não a aplicação de determinadas leis na Colônia. O Tribunal da Relação da Bahia, criado em 1609, rapidamente se notabilizou como uma instituição corrupta. Os colonos pulavam em sua defesa cada vez que a Coroa agia contra os juízes explicitamente venais. Esse coito infernal era bom para ambos os lados. A Justiça que submetia os moradores da América portuguesa era rapace. A voracidade de meirinhos, escrivães e juízes, insaciável. Enganavam-se, com o maior descaramento, as partes litigantes. Certos magistrados alegavam mesmo que seus emolumentos tinham que ser pagos pelas partes, abrindo as portas para as maiores extorsões. O costume, então dominante, de arrendamento de cargos públicos, favorecia a roubalheira. Nada mais imediatista do que a relação dos funcionários públicos com o Brasil. Muitos deles removidos da Corte por causa de dificuldades financeiras, dirigiam-se à colônia para resolver tal problema no tempo mais curto possível. Manter-lhes “as mãos ocupadas” ou as rodas azeitadas” foram expressões correntes no século XVIII, para definir, não sua preocupação com a coisa pública, mas com seu próprio bem. Bem, ou melhor “bens”, amealhados à custa do interesse coletivo. Não é a toa que um dos mais importantes libelos contra a corrupção, o famoso A Arte de Furtar, anunciava que entre os funcionários, os maiores ladrões eram aqueles que tinham por ofício livrar o povo…dos ladrões! No Rio de Janeiro, quando da vinda da família real, ela não hesitou em aumentar a contribuição fiscal para manter a Corte e seu aparato burocrático. Mas, em troca, distribuía títulos honoríficos que distinguissem seus favorecidos do restante da população. Era dando que se recebia. Em contraste com esta estrutura de longuíssima duração, temos a família imperial que, com exceção do Conde D´Eu – acusado por jornais republicanos de agiota e explorador de casas de cômodos – morreu em pobreza franciscana. Sem um vintém! A admiração não é, portanto, destituída de fundamento histórico. É resultado de comparação. A percepção popular está ancorada no binômio probidade versus corrupção. Não tem nada a ver com paternalismo, pois neste quesito, os políticos, hoje, estão levando a melhor. E, infelizmente, nos levando ao pior. E, para infortúnio geral, as nossas democracias tem sido o espelho da mais deslavada e impune decomposição ética.

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A história contrafactual, está longe de ser uma brincadeira. Ao contrário, trata-se de uma abordagem que dá muito que falar. Mas, também, muito que aprender. Simplificando, ela é o resultado de uma pergunta: o que teria acontecido se os holandeses tivessem ficado no Nordeste, se a Corte portuguesa não tivesse vindo ou se Getúlio não tivesse se matado? Uma outra definição possível e mais complexa poderia descrevê-la como o estudo de resultados alternativos para determinados eventos da história. Pode-se, sim, fazer tal história, construindo argumentos e dando respostas a partir das circunstâncias e conjunturas bem fundamentadas, tendo-se um profundo conhecimento do período enfocado e baseando-se, como toda a história que se preze, em documentos e erudição, O produto, quando o historiador se pergunta “E se…”, é uma outra resposta. Uma resposta alternativa.

Este método de estudo já foi aprovado pelas academias anglo-saxônicas: ele trata do julgamento do passado baseado em evidências a despeito da possibilidade de indignação que uma nova imagem sobre este mesmo passado possa apresentar. Niall Ferguson é seu mais conhecido e notável representante. É natural, contudo, perguntar-se quais os benefícios da história contrafactual, se procedendo indiretamente contra a história factual ela parece entrar, de cabeça, no mundo da fantasia. Os historiadores que adotam esta abordagem – e não são poucos – provam que é possível estudar história usando outros métodos que os tradicionais e analíticos. Afinal, os métodos tradicionais, como bem sabemos, também não aportam conclusões unânimes. A história não é uma ciência de laboratório em busca de respostas prontas e finitas. Sabemos que não sabemos exatamente como “tudo” aconteceu, pois nem todas as fontes sobreviveram. Nem todos os relatos são isentos. Nenhuma testemunha pode observar um fato histórico sob todos os ângulos.

Ciente disto, Ferguson é partidário da tese de que o laboratório do historiador é a sua mente. É aí que, por meio da imaginação, ele constrói seus objetos. Dessa perspectiva, os contrafactuais seriam o equivalente virtual da experimentação laboratorial para os historiadores. Perguntar-se sobre o que poderia ter acontecido é tão importante quanto indagar sobre o quê aconteceu. É certo que nesta matéria houve choro e ranger de dentes. Nomes importantes como E.Carr e E. P. Thompson  fustigaram o contrafactualismo como um exercício inútil. Muitos outros os seguiram, acusando esta abordagem de desmontar os determinismos históricos, apostando no acaso. Mas, também, são muitos os acadêmicos da envergadura de John Keegan e James Macpheson que por meio de ensaios e compilações editaram e contribuíram para o crescimento da história contrafactual. A história contrafactual é uma estimulante atividade que acelera a capacidade de imaginar o que pode ter acontecido. Ela é uma força e não uma fraqueza. Os textos produzidos sob sua inspiração, são de alta qualidade, além de multiplicarem o prazer de ler história. Eles são uma combinação competente da ciência da história e da liberdade da narrativa. Vamos aguardar que um historiador responda a esta pergunta, – “E se os Bragança não tivessem vindo?” – baseado no rigor do ofício e no maior e melhor conhecimento do episódio do exílio da família real, que só agora, vem ganhando muitas e inovadoras interpretações.

 

  • Texto de Mary Del Priore.

 

D. João e D. Carlota Joaquina, de Manuel Dias de Oliveira.

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