Dia dos Pais: transformações da paternidade no século XIX

Carta D. Pedro aos filhos

                 “Meu querido filho e amadas filhas […] escusado é que eu digo que muito vos amo e que de todos tenho muitíssimas saudades”; ou, “Meu amado filho e adoradas filhas”, “recebei a benção que de todo o coração vos deita vosso saudoso pai que muito vos ama”. A julgar pela biografia, ninguém diria que a voz desse pai extremoso foi a do homem de muitas amantes e personagem de eventos políticos que mudaram o rumo da historia do Brasil: D. Pedro I. Suas cartas repletas de carinho e preocupação com os filhos que deixou no Brasil, ao abdicar do trono e partir para Portugal em abril de 1831, revelam mudanças e novas lógicas nas relações entre pais e filhos. O sentimento do que chamaríamos “paternidade”, ou seja, o “estado ou qualidade do pai” estava em curso, na primeira metade do século XIX, enquanto D. Pedro cuidava dos filhos.

O que era ser pai, então? Publicado em 1728, o dicionário do padre jesuíta Rafael Bluteau, num longo verbete definia o “o pae ou o pay” como “A primeira pessoa da Santíssima Trindade […] que gerou seu filho Unigênito”. Em 1789, outro dicionário, o de Antônio Moraes Silva, dedicava à palavra um verbete bem menor: era “o homem que fez o filho ou a filha […]. E o mesmo do macho dos animais que fecundou a fêmea. O chefe da família, o cabeça do casal”. E em 1832, Luiz Maria da Silva Pinto, repetia: “era o homem que fez filho ou filha” e dava à palavra um sentido figurado: “benfeito, autor, inventor”. O pai sagrado declinava à medida que emergia o século da razão e da ciência.

Durante séculos, a palavra “pai” esteve referida ao Eterno. Apenas, Ele, Deus Poderoso era pai. E pai imparcial, cruel para corrigir os erros humanos. O Pai do Antigo Testamento era o fundador de uma ordem. Já o terreno, um mediador entre os seus familiares e a divindade. E se o Pai Eterno era onipresente, os de carne e osso eram figuras bastante ausentes. Deambulavam dentro do vasto território da América portuguesa em busca de trabalho. Foram lavradores, donos de engenhos de açúcar, mineradores, cativos trazidos das costas africanas, artesãos, condutores de tropas, donos de pequeno comércio, milicianos, etc.

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            Figuras pouco nítidas, pais eram, por vezes, lembrados pela memória popular em expressões e ditados de uso comum: “Tal pai, tal filho”, maneira de reconhecer os traços do genitor ausente. Tão ausente que expressões jurídicas da época manifestavam a realidade de muitos filhos: “de pai incógnito” – como rezavam os documentos de batismo. Afinal, a bastardia ou ilegitimidade se expressariam pela semelhança física. Eis porque muitos de nossos antepassados foram mais “filhos da mãe”, do que do pai.

Mas, se ausentes fisicamente, o pai gozava de uma imagem fortíssima. Imagem que dominava a precária vida privada. Em teoria, cabia-lhes velar por tudo, comandar o trabalho, distribuir comida e castigos. A lei, dentro de casa, era estabelecida por ele. Espécie de chefe grave e austero, a ele era atribuída a transmissão de valores patrimoniais, culturais e o patronímico que assegurariam à criança sua passagem e depois, sua inclusão na sociedade. Para o poder do pai, não havia freios. Ao conservar resquícios do sistema romano, o direito pré-codificado conferia ao pai, poderes que nem a maioridade interrompia, quando o filho completava 25 anos. A preocupação em não apenas engendrar, mas, sobretudo, em educar filhos, irrompeu durante o Renascimento.

               Em 1685, em Portugal, o padre jesuíta Alexandre de Gusmão, inspirado num clássico que correu a Europa, da pena de Erasmo de Roterdã – A civilidade pueril – publicou o seu A arte de criar os filhos na Idade da Puerícia. Guiado pela visão religiosa que se tinha da educação, Gusmão não tinha outro objetivo: criou uma obra para provar que o bom cuidado dos filhos significava os bons costumes dos pais. A primeira parte, voltada para os genitores, não deixava dúvidas. Os capítulos se sucediam com os títulos: “Da crueldade de pais que matam os filhos” […] “Dos que os enjeitam”, “Do quanto agrada Deus os que bem os criam” […] “Quão severamente castiga Deus nesta vida os pais negligentes na boa criação dos filhos”.

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Doutrinar, castigar, encaminhar, solucionar problemas… Tais os mandamentos do bom pai. Mas existia também uma dimensão sentimental capaz de registrar momentos da afeição paterna. Momento em que um rosto se cobria de lágrimas de alegria ou de dor. Sabe-se que D. Pedro batizava seus filhos com a imperatriz Leopoldina ou com sua favorita, Domitila, a marquesa de Santos, com exuberância. D. Pedro II, por exemplo, teve a cerimônia realizada na igreja de Nossa Senhora do Outeiro da Glória, em dezembro de 1825. Seu pai chegou a compor um Te Deum, em homenagem à cerimônia. Isabel Maria, futura duquesa de Goiás, recebeu o batismo na Igreja de São Francisco Xavier do Engenho Velho, em maio de 1824. Ausente, nunca deixou de se manifestar nos seus natalícios. “Nossa Belinha”, como era chamada a filha mais velha com Domitila, ganhou título de duquesa, festança com ceia, e o direito de ser chamada “Vossa Alteza”, num de seus aniversários. Mesmo de volta a Portugal, D. Pedro escrevia aos filhos que deixou no Brasil:

              “Meu querido filho. Estando a sair um navio para esta corte, não quis deixar de te escrever e te dar os parabéns do dia do teu nome, como o fiz o ano passado em Paris”. Seguia seus estudos e progressos, como se vê em cartas ao filho: “Vejo pelas tuas cartinhas […] e me convenço que tu fazes progressos. Duas cartas já escritas sem lápis e com tão linda letra”.
Ou numa outra, conjunta a todos:

“Muito sinto que não me digais alguma coisa relativa aos vossos estudos, mas penso que o motivo de assim não o fazerdes, não foi outro senão a pressa com que me escrevestes. É mister que dê os meus louvores à Januária pela boa escrita, e a Nhonhô e à Paula por terem feito seus nomes muito bem, tendo a desconsolação de ver que a Chiquinha não escreveu o seu também, como era para desejar. Espero que empregueis bem o tempo em que vos apliqueis”.
Não foram poucas as cartas que D. Pedro escreveu, revelando a intensidade dos sentimentos, saudades e, como de praxe, orientações. O carinho dos apelidos – D. Pedro II era chamado de Nhonhô – não descurava da avaliação dos estudos

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             D. Pedro, o “bom pai”, como afirmaram tantos biógrafos. Sim, pois o sentido da paternidade estava visivelmente em transformação. Passava-se do “pai tirano” ao “pai amante”. O jovem imperador inspirava-se claramente deste novo princípio. Se durante o Antigo Regime eram comuns os pais que tratavam seus rebentos com brutalidade e ignorância, essa era a época dos laços de afeto e cuidados com os filhos. A paternidade deixava de ser pautada exclusivamente pelo sangue, pela linhagem, para consolidar-se como resultado de um desejo, de uma vontade. O homem deixava de ser simplesmente um genitor, para responsabilizar-se pelo amor à criança e o bem da família.

            Hoje, os pais não ocupam – ou não desejam ocupar – um papel de puro autoritarismo. Gritos e ordens não funcionam mais como reguladores do equilíbrio familiar. Apenas denunciam um indivíduo violento, contra o qual existem sanções. O pale do pai, ao contrário, é tornar possível o encaminhamento da criança, desde sua realidade biológica de pequeno ser vivo, até a maturidade e sua integração social. De preferência com responsabilidade e afeto.

           E ainda nos perguntamos: o que é um pai? Questão em aberto, que vem sendo respondida pela sociedade e pela evolução do direito. Para se desenvolver a paternidade precisa de toda uma elaboração psíquica. Ora, existe em vários momentos históricos e em diferentes sociedades uma pluralidade de pais e também de genitores. Em nenhuma delas, o papel de pai é natural. Cada sistema social marca por um nome e um rito o espaço dos seus. Esse lugar significa a culturalidade da função paterna. Culturalidade que se vai construindo ao longo do tempo, feita de rupturas e permanências, de valores novos e outros tradicionais.

– Texto de Mary del Priore.

(Referência Bibliográfica: “Pais de ontem: transformações da paternidade no século XIX”. IN: “História dos Homens no Brasil”, Editora UNESP, 2013 – organização Márcia Amantino e Mary del Priore).

D. PedroI

D. pedro I: pai extremoso.

2 Comentários

  1. fernando
  2. Maíse

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