Dia das Crianças: brinquedo de menino, brinquedo de menina

           Atualmente, há discussões calorosas até sobre as brincadeiras infantis.  Seriam alguns brinquedos ou atividades exclusividade de determinado gênero de criança? Bonecas para meninas e carrinhos ou bolas para os meninos? Faz sentido impor como os mais jovens devem brincar? Mary del Priore, em “Histórias da Gente Brasileira: República 1889-1950 (Editora LeYa, 2017)”, nos conta que antigamente as coisas não eram assim tão rigidamente definidas como alguns pensam: as crianças podiam apenas se divertir livremente. 

 

 

Brincadeiras: as de meninas ou as de meninos? Elas não se diferenciavam tanto, segundo Adalgisa Néri. O importante era brincar ao ar livre: “Eu tinha aparência de uma criança comum, gostando de correr, de gritar, de cantar, de subir nas árvores, de espiar o ninho dos pássaros nos grandes sapotizeiros do quintal, que gostava de soltar papagaio com os meninos, de brincar de roda, de deitar no chão de terra e conversar com as nuvens que passavam apressadas”.

Crianças se divertiam mais com brincadeiras do que com brinquedos. Elas aprendiam a jogar e jogavam, aprendendo convenções e regras da vida social. A rua, o quintal, o chão de terra eram o campo onde crianças ricas e pobres podiam atravessar as barreiras de classe: brincavam juntas. Nem sempre havia paz social. Maria da Glória Vargas Ramos não podia brincar de passa-anel “pois usava calcinha de seda que se estragaria se sentasse no chão”. A calcinha especial a denunciava frente às outras meninas: seria rica. Triste, foi consolada pela mãe, costureira pobre, que usava retalhos dos tecidos das clientes, para fabricar as calcinhas da filha. Em geral, o ambiente convivial, a descarga de tensões, o riso de si e dos outros, facilitava estar junto e em grupo. “O ritmo, o riso, os giros e as vozes […] Fazer parte, pertencer, ser igual” no sentimento de ser criança, segundo Lia Luft. E as brincadeiras coletivas se impunham, como narrou Zélia Gattai.

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Na casa dos Bertini havia sempre muitas crianças: os folguedos eram tantos que o dia passava rápido. Cantávamos canções de roda: “Ciranda, cirandinha…”, “Margarida está no castelo…”, e uma quantidade de outras cantigas de roda. Como de hábito, havia entre as crianças, rivalidades e partidos, vivíamos de arengas, brigávamos muito”.

Ou como contou Veríssimo: “Quase todos frequentávamos a mesma escola. Jogávamos todos futebol na rua com bolas feitas dum pé de meia cheio de trapos. Era uma alegria se algum de nós aparecia com uma bola de borracha. Uma festa de gala quando surgia alguém – em geral um menino rico – com uma bola de couro. As vezes o dono da bola era um chato que tínhamos que suportar e adular com a maior paciência, a fim de que ele nos permitisse usar o precioso balão. […] Brincávamos também –no largo da praça – de diabo-rengo e de chicote queimado”.

Brinquedos existiam, sim, mas, importados da Europa, vindos das fábricas instaladas na Inglaterra, Alemanha e França. Desde o século XIX, de lá chegavam bonecas de porcelana, trenzinhos de lata e soldadinhos de chumbo. Mas a posse deles permaneceu um privilégio de poucos. Apenas a classe alta tinha acesso aos importados. A produção nacional começou com a vinda dos imigrantes europeus. Desde o início do século, eles montavam pequenas fábricas de produtos artesanais, ou fabriquetas de fundo de quintal, que reproduziam objetos da vida adulta – desde sempre uma maneira de adestrar a criança para as profissões que elas iriam exercer no futuro, diz a historiadora Ludmila Érica Cambusano de Souza. Para os meninos, eram fabricados pequenos jogos de ferramentas, caldeirinhas de fábricas e trenzinhos. Para as meninas, objetos que a preparassem para a futura vida doméstica – bonecas, panelinhas e fogões. Durante a Primeira Guerra, a dificuldade para a importação de produtos europeus alavancou diversos setores da indústria nacional, entre eles o de brinquedos. Para ficar num exemplo, apenas em São Paulo, nas primeiras décadas do século 20, havia perto de 80 pequenas fábricas de brinquedos.

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Na Rua de São Bento, a Fábrica de Brinquedos e Quiquilharia Grand Bazar Parisien vendia “pequenos objetos necessários à diversão da infância”. Ao final do ano, por conta do Natal, as casa comerciais anunciavam em jornais e revistas a chegada de novidades. Algumas ofereciam até cartões para sorteio de outros brinquedos: uma bicicleta, por exemplo. Para melhorar a educação musical, a Ypiranga passou a produzir pianos de tamanho infantil. A partir dos anos 30, o anunciante era o próprio Papai Noel: “Brinquedos para todos os preços, ho, ho, ho!”. Nessa época, duas fábricas de brinquedos se destacaram: a Metalma, de 1931, e a Estrella, de 1937. A primeira era uma divisão das Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo (IRFM), e a principal matéria-prima eram as sobras das folhas de flandres utilizadas para a fabricação de latas da indústria alimentícia.

Quem não podia comprar brinquedos prontos, os inventava. Como Moacir Scliar: “Passei boa parte da infância na oficina de móveis do meu tio. Como não podia comprar brinquedos em lojas – eram muito caros – eu os fabricava, utilizando a madeira que sobrava dos móveis. Confeccionava assim, aviões e navios de guerra, todos com muitos canhões, cada canhão representado por um prego o que ficava fácil criar um grande poder de fogo”.

Brinquedos feitos pelas mãos de crianças eram também as bruxas de pano, segundo Thiago de Mello, “As bonecas das crianças pobres. De fabricação caseira, o corpo da boneca era recortado em morim branco, dobrado em dois para que a frente e as costas saíssem com o mesmo feitio; costuradas as bordas, eram recheadas com algodão ou trapos, as mais bem feitas tinham dedinhos; as sobrancelhas, os olhos, o nariz e a boca eram bordados a mão com linhas de cores adequadas. Finalmente, os vestidos de chita colorida, antes a fabricação cuidadosa da cabeleira em tiras de tecido negro, algumas vezes dispostas em tranças delicadíssimas, uma de cada lado. Havia também os bruxos, de calça e paletó. Festa de criança incluía casamento de bruxos”.

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E havia meninas que não gostavam de bonecas como Carolina Nabuco: “Entre os presentes de bonecas não posso deixar de incluir uma que veio acompanhada de maleta, trazendo enxoval completo feito por minha prima Nêne… nunca me interessei por bonecas. Faltava-me paciência para vesti-las, afagá-la, brincar maternalmente com elas. Maiorzinha, porém, pelos onze ou doze anos, comecei a recortar crianças nos jornais de modas. Entre as figurinhas eu criava parentescos e amizades; dava-lhes nome e voz e distraía-me incansavelmente em romancear ou dramatizar-lhes a vida. Falava por cada uma, estabelecendo brigas ou simpatias, amizades e aversões. Às vezes, recortava também uma bonita figura de moça para exercer o papel de mãe…esse mundo de papel que morava em caixa de sapatos era rigorosamente feminino pois as revistas de moda não ofereciam naquele tempo estampas que pudessem figurar Papai ou maninhos”.

Imagens (reprodução): Cândido Portinari – Futebol (1935); Meninos Brincando (1955); Roda Infantil (1932).

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