“Democracia racial”: Chica da Silva

 A sociedade colonial era formada por uma infinidade de grupos, cores e ocupações e estava longe da divisão esquemática entre negros, brancos e indígenas, ou entre proprietários e escravos. Uma parcela da população, muitas vezes esquecida, é a dos libertos, forros ou alforriados – os escravos que tinham conseguido alforria, por diversos meios, e passaram a ocupar uma posição delicada neste modelo que se pressupunha hierarquizado e estático. No final do período colonial, os libertos correspondiam a 42% da população de origem africana e a 28% da população brasileira, de acordo com Boris Fausto. Mas, afinal, como estes ex-escravos viviam? Sabemos que a maior parte estava condenada à miséria e à exclusão. A historiografia recente já demonstrou, porém, que existiu uma pequena parcela que conseguiu se estabelecer, adquirir propriedades e até se incorporar à sociedade.

            A descoberta do ouro e dos diamantes causou um aumento muito grande na população de Minas Gerais: homens livres de todo o Brasil e de Portugal chegavam todos dias para tentar a sorte e a fortuna. Traziam escravos para trabalhar na rotina dura do garimpo. Havia uma desproporção enorme entre homens e mulheres – livres e cativos. Isso incentivava mais ainda o concubinato entre os homens brancos e as escravas (negras, crioulas, mulatas e cabras). As mulheres foram maioria entre os escravos alforriados em Minas, neste período. Senhores costumavam dar a liberdade às companheiras apenas depois de mortos, por meio de testamentos. Muitas destas ex-escravas desfrutavam de relações estáveis com homens brancos, das quais nasciam filhos, que geralmente eram amparados pelos pais. Elas adotaram um série de atitudes para tentar apagar o passado de escravidão, miséria e preconceito.

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            Vamos destacar, de maneira breve, o caso de Chica da Silva, a mais famosa destas mulheres e que foi objeto de inúmeras histórias, lendas e mistificações – que só contribuíram para tornar sua trajetória mais nebulosa, como demonstra Júnia Ferreira Furtado, em “Chica da Silva e o Contratador de Diamantes – o outro lado do mito”. A vida desta mulata nos ajuda a entender como funcionava o mecanismo de “branqueamento social” por que os alforriados tinham que passar para serem, pelo menos parcialmente, aceitos na sociedade. Chica e o poderoso contratador de diamantes João Fernandes de Oliveira viveram juntos por 17 anos e tiveram treze filhos. João Fernandes a libertou logo após tê-la comprado de seu antigo proprietário – o que não era tão comum nestes casos.

            Chica se esforço para afastar dos filhos – e dela mesma – o peso da escravidão. Providenciou educação para a prole, adquiriu escravos (chegou a ter 104 cativos), montou casa “grossa”, enfim,  não dispensou nenhum sinal exterior da posição que passou a ocupar. As roupas e as joias eram um dos mais importantes indícios de que a mulata passara de escrava a senhora. Chica e as outras forras sabiam disso e aderiram à ostentação no vestuário, típica das classes mais abastadas. Vestidos de cetim e seda, meias de seda, capas, chapéus, sapatos forrados de tecidos finos, saias e blusas coloridas de chamalote, anáguas, espartilhos, tudo isso, adornado por fivelas e botões de metais preciosos, colares, brincos, pulseiras e, muito ouro e diamantes. As alforriadas em melhor posição social, como Chica, colocavam todo este aparato para sair às ruas em suas cadeirinhas e serpentinas luxuosas, seguindo para as missas, como faria qualquer branca rica. Uma curiosidade: as perucas, que ficaram associadas à figura de Chica devido aos filmes, novelas e outras obras de ficção, não faziam parte do vestuário dela e nem de qualquer mulher da região, sendo um acessório masculino, pouco usado, nas Minas Gerais de então.

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            As atitudes das mulheres forras escandalizavam alguns “homens bons” e religiosos que temiam pela ordem social. João Antônio Andreoni, o Antonil, observava, com desaprovação, em “Cultura e Opulência do Brasil” que boa parte do ouro retirado das minas era destinado a “cordões, arrecadas e outros brincos” para as “mulatas de mau viver, e as negras, muito mais que as senhoras”. O governador de Minas, em 1732, Conde Gouveia, também achava um absurdo assistir ao desfile das “atrevidas” mulheres de cor, no Tejuco, entrando “na casa de Deus com vestidos ricos e pomposos e totalmente alheios e impróprios de suas condições”. Se por um lado, as forras recorriam à ostentação para mostrar que não eram diferentes das senhoras brancas; de outro, elas incomodavam os mais conservadores ao apropriar-se dos meios que deveriam ser exclusivos da classe fidalga.

            Talvez, por causa destes excessos no vestir, Chica tenha se transformado em uma  mulher frívola e deslumbrada pela historiografia mais antiga e pelas obras de ficção que se inspiraram nela. É justo ressaltar que as forras não lançavam mão de nenhum artifício que não fosse típico dos fidalgos, ou seja, o pecado delas não foi apreciar o luxo e  a ostentação, mas, o fato de que elas utilizaram meios que não lhe pertenciam para se afirmar em uma sociedade que as rejeitava. Eram as sutilezas do racismo à brasileira- bem distante da “democracia racial” que alguns estudiosos enxergam no Brasil.

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– Márcia Pinna Raspanti

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  1. Francisco Isaac

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