De onde vem o Carnaval?

            A origem do Carnaval se perde na noite dos tempos. É tão antiga, que as religiões históricas nascidas às margens do Mediterrâneo tiveram que fazer, cada qual a sua maneira, um lugar para tais festividades, inscrevendo-as  no seu calendário. O cristianismo associou o Carnaval à Quaresma, logo, aos festejos que antecediam a Páscoa. O judaísmo, por sua vez, o comemorava na festa de Purim, celebração em homenagem a rainha Éster. Quanto ao Islã, ele situou as mascaradas berberes no início móvel de seu ano lunar.  As três festas seguem, contudo, marcadas pelo mesmo paradoxo: firmemente inscritas no tempo religioso, elas aparecem, em diferentes graus, como fragmentos ou parênteses pagãos. Mas vejamos como tudo começou.

            Vamos encontrar os primeiros registros de um antepassado do carnaval na longínqua Babilônia. Data do século III A.C o que seria um atestado de batismo da festa que tinha início aos 16 dias do mês de julho. Durante cinco dias, as hierarquias se invertiam: servidores distribuíam ordens aos seus senhores, o rei era substituído por um prisioneiro. Esse se exibia no trono, comia os melhores alimentos, dormia com as esposas reais. Ao fim do quinto dia, despojado de suas vestes brancas ou vermelhas, símbolo do poder, ele era açoitado e depois, enforcado.  O rei, até então escondido, era levado à presença de um sacerdote e, depois de humilhado, era arrastado pela orelha até a estátua do deus Marduk, a quem prometia servir, bem como ao seu povo, com toda a integridade. O que se comemorava por meio de fantasias e travestimentos capazes de inverter a ordem das coisas, era a regeneração da sociedade inteira. No século IV, duas semanas antes das calendas de janeira, celebravam-se, na Roma Antiga, as Saturnais. O palco era o templo de Saturno, deus cuja esfera de ação é o tempo. Aí tinham lugar banquetes e, de novo, se dava à inversão de papéis: mestres servindo escravos e a eleição de um rei de fantasia a quem era outorgada a liberdade absoluta de palavras e ordens.

           A Antiguidade tardia teria sido o berço do Carnaval? Alguns especialistas acham que sim. Mas é, sem dúvida, no calendário cristão que brotam suas raízes mais evidentes. O Cristianismo resolveu unificar o tempo de todos os fiéis em torno do grande drama da Paixão, de forma a que ela pudesse ser celebrada em qualquer lugar do império. Instaurando uma liturgia com obrigação geral de culto, ele procurava ordenar seu calendário, de maneira a diferenciá-o do pagão – calendário móvel no qual cabiam todas as devoções. Além da rigidez das festas, o cristianismo proibia o uso das máscaras nos seus ritos, – feito à imagem de Deus, como poderia o homem modificar sua imagem, senão por artimanhas do Demônio? -, além de perseguir os antigos deuses, consideradas criaturas decaídas. Tais ensinamentos teológicos deveriam ter erradicado completamente as mascaradas ou festejos onde as hierarquias ficavam de ponta-cabeça. Mas ao contrário. Elas floresceram a sombra do cristianismo triunfante. Com o Império cristão, as chamadas calendas de janeiro invadem os países romanizados. Com banquetes, a festa agora durava três dias, sendo que o terceiro era dedicado às mascaradas. A máscara significando a passagem entre um mundo e outro.

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          Por volta do ano mil, a organização definitiva do tempo cristão marca a ruptura alimentar entre os períodos de abundância e de jejum. Por um lado, o Natal e as festas da Virgem eram fixados pelo ano solar, enquanto a Páscoa dependia da primeira lua da primavera. E isto, por uma única razão: ela não podia coincidir com a Páscoa judaica. Para marcar o período em que era preciso deixar os prazeres da mesa e da carne, os clérigos latinistas forjaram  a ideia de carnisprivium ou carnis tolendas. Na Europa ocidental, o nome correspondia ao início da Quaresma, período que durante a Idade Média preparava os catecúmenos para o batismo coletivo no dia da Ressurreição do Cristo. Ao longo da Idade Média, no campo ou na cidade, os festejos com mascaradas eram mais definidos por estações do que por datas exatas. Entre Natal e Carnaval, multiplicavam-se as quermesses. O período de matança de porcos, para o preparo de embutidos a consumir na semana gorda, dava aos jovens a oportunidade de tingir o rosto com cinzas, encapuzar-se, vestir-se com sacos, roupas de mulher ou suas roupas ao avesso. Não era raro que alguém pendurasse ao pescoço, a cabeça do porco ou a de um coelho. Assim vestidos, os jovens iam “fazer a ronda”: um passeio longo, pelos campos, em busca de casas cujos donos podiam ser assustados com seus gritos de “Hou! Hou!”. Numa delas, comiam, bebiam, arrancavam beijos às meninas que tentavam, por sua vez, reconhecer quem se escondia atrás das máscaras. Durante semanas estas excursões preparavam a Quarta-Feira de Cinzas. Neste dia, um manequim figurando o carnaval, fazia sua entrada no vilarejo. Um grande cortejo de mascarados acompanhava uma carroça de palha onde se equilibrava o rei da festa. Crianças, mulheres e velhos participavam às brincadeiras que variavam segundo a região. Ao final do dia, o boneco do carnaval era queimado num muro próximo à Igreja, juntamente com as máscaras e acompanhado de lamentos que anunciavam a chegada da Quaresma: tempo de abstinência e de sopa de alho.

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            Em regiões do norte da Espanha, por exemplo, a festa permitia a inversão do papel das mulheres: no dia 5 de fevereiro, dedicado  à santa Ágata, elas tomavam o poder em casa e nas ruas, desfilando com danças e cânticos. Quem quer que ousasse contrariar as “ágatas” era violentamente espetado com fusos e agulhas. Na Grécia, mais especialmente na Trácia e Macedônia, a festa se celebrava no dia 8 de janeiro. As mulheres acorriam à casa da mais velha parteira, a “babo”, vestidas com suas mais belas roupas. Embaladas por musicas, confeccionavam um sexo masculino com legumes ou embutidos e, travestidas de homens, iam para as ruas, onde perseguiam e maltratavam o sexo oposto.  Para terminar, um banquete celebrava as concepções e os partos do novo ano.

            Em outras regiões, onde as mulheres não participavam tão diretamente aos jogos de inversão, preparavam nas cozinhas, alimentos – polentas, doces, millas – que seriam não apenas ingeridos, mas seus restos serviam a uma grande batalha de comida realizada na Quarta-Feira de Cinzas. Não faltavam os homens, que depois de comer exageradamente, imitavam a gestação das mulheres, macaqueando partos e dando à luz a um bebe chorão e faminto O bebe era um dos membros do grupo. A brincadeira com a gravidez masculina retoma um tema que a festa torna explícito: o da reprodução. Comidas flatulentas, capazes de encher a barriga de varões lhes induziam a parir um filho… Filho do carnaval. A Festa dos Loucos, tantas vezes representada na pintura do Renascimento, invertia a hierarquia clerical, com danças, sermões cômicos, cânticos religiosos com duplo sentido e padres fantasiados de mulheres. Ela desaparece no século XV.

          Nas cidades, durante a Idade Moderna, marchavam mascaradas as chamadas “nações” de estudantes, as confrarias e irmandades de artesãos. Em Nurembergue, por exemplo, os açougueiros desfilavam em carros alegóricos, proclamando sua derrota ante a vitória da Quaresma que condenava as pessoas a comerem arenque e bacalhau. Na França do século XVIII, durante o carnaval parisiense do Boi Gordo, Le Boeuf Gras, o animal desfilava enfeitado com fitas e acompanhado de pífaros. As cidades multiplicavam a sociabilidade das confrarias, graças às Abadias de alegria que reuniam artesãos e seus aprendizes. Nelas sucediam-se cavalgadas e um rei dos bobos era puxado em seu carro, numa entrada triunfal às avessas. Com o chapéu do louco e soprando apitos, ele conduzia uma procissão ou desfile cujo tema, ao sabor das modas e dos tempos, era escolhido anualmente. Não podia, contudo, faltar à crítica aos poderosos: alusões com duplo sentido, discursos cheio de intenções, caricaturas. Nada escapava ao olhar crítico dos carnavalescos.

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           O modelo ideal se exprime, contudo, nos Carnevale das cidades italianas, onde o jogo entre a mascarada e o teatro refletia a vida de corte Na Toscana, jovens aristocratas cavalgavam pelas cidades, magnificamente adornados, formando as companhias – Brigata della galea, del Fiore, entre outras. Brasões coloridos enfeitavam os bailes e o berlingaccio, banquete do último dia. Em Veneza, multiplicavam-se os mascareri, artesãos que amoldavam máscaras de papelão, veludo, couro ou linho encerado. Surge a figura do arlequim, sempre à espera dos favores femininos. Surge, igualmente, o polichinelo, amigo das crianças a quem atraía com marzipan. O carnaval se apropria das máscaras de teatro inserindo-as nos bailes que contavam ainda com alegorias vivas e festivais de pirotecnias. Catarina de Médicis introduz estas comemorações na corte francesa, trazendo, para animá-las troupes da comédia del´arte A partir do século XVIII o uso da bauta – máscara – se torna obrigatório durante as festas e nos lugares públicos. Coube a Giacomo Casanova, difundir a prática graças às suas memórias. O confetti, que irá substituir as guerras antes de farinha e comida, era feito em Veneza com grãos açucarados. Com o tempo, os pequenos doces foram substituídos por papel colorido e descritos por Goethe (em ‘Viagem à Itália’) num carnaval que viu em Roma. A palavra corso, vem da rua do mesmo nome na capital italiana, onde se realizavam as festas públicas.

 – Texto de Mary del Priore.

carnivalbrueghel

Brueghel: “A Luta entre Carnaval e Quaresma” (1559).

2 Comentários

  1. anonimo
  2. heraldo

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