Das “boas moças” às mulheres liberadas

Ontem falamos sobre a polêmica das mulheres “rodadas” e acho que o texto de Mary del Priore sobre a trajetória feminina desde os anos 50 até os dias de hoje é pertinente nessa discussão. Confira:

Depois da II Guerra Mundial, o Brasil viveu um momento de ascensão da classe média. O carro se popularizou, assim como a piscina de clubes, o cinema, as excursões e viagens. Jovens podiam passar mais tempo juntos e a guarda dos pais, baixou. Filmes americanos seduziam brasileiros e não foram poucos os que aprenderam a beijar vendo Humphrey Bogart e Lauren Bacall, casal de amantes na vida real.

As revistas femininas tinham então um papel modelar no que dizia respeito à vida amorosa. Querida, ou sessões femininas no O Cruzeiro vendiam a idéia de que ser mãe e dona de casa era o destino natural das mulheres, enquanto a iniciativa, a participação no mercado de trabalho, a força e o espírito de aventura definiriam a masculinidade.

Não importavam os desejos, o que contava ainda eram as aparências pois segundo tais revistas, “mesmo se ele se divertir, não gostará que você fuja dos padrões e fará fofoca a seu respeito na roda de amigos”. Durante os chamados Anos Dourados, aquelas que permitissem liberdades acabavam sendo dispensadas e esquecidas, pois “o rapaz não se lembrará da moça a não ser pelas liberdades concedidas”.

Mantendo a velha regra da submissão feminina, eram os homens que escolhiam e com certeza, preferiam as recatadas, capazes de se enquadrar nos padrões da “boa moral e boa família”.  O bem estar do marido era a medida da felicidade conjugal e esta adviria, em conseqüência de um marido satisfeito. E qual a fórmula? Seu primeiro componente eram as “prendas domésticas”. Afinal, a mulher conquistava pelo coração e prendia pelo estômago. Brigas entre o casal? A razão era sempre do homem. Mas se razões houvesse, melhor para as mulheres resignarem-se em nome da felicidade conjugal. Nada de enfrentamentos, conversa entre iguais ou franqueza excessiva. Se quisesse comprar um vestido ou recuperá-lo depois de um affair extra-conjugal que desse um jeitinho. O “temperamento poligâmico” dos homens justificava tudo: “mantenha-se no seu lugar, evitando a todo o custo cenas desagradáveis que só servirão para exacerbar a paixão de seu marido pela outra […] Afinal, no entender destas conselheiras sentimentais, “o marido sempre volta”.

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Entre os anos 70 e 80, a pílula anticoncepcional, a migração campo-cidade e a explosão urbana, ajudaram a mudar os papéis dentro da família. Começou a se discutir o desejo de multiplicidade de parceiros sexuais e a estabilidade sexual necessária aos filhos, o lar e a carreira profissional. As transformações econômicas, demográficas, culturais e sociais agiram para modificar as relações familiares. Graças à disseminação da pílula, as mulheres ganharam espaço no mercado de trabalho. Os álbuns de família e os retratos ganharam também novos atores: madrastas, padrastos, meios-irmãos e produções independentes.

Segundo cálculos do IBGE, na última década, 47% dos domicílios têm pais ausentes. Muitos deles, se caracterizam por ligações consensuais temporárias. Os avós têm novo papel: criar e educar os netos, repartindo com pais biológicos responsabilidades, inclusive, financeiras. Os divórcios triplicam e há uma diminuição de 12% nos casamentos. Uma mudança importante se dá para as minorias: os homossexuais começam a sair do armário. “Pai, mãe: sou gay”. A confissão é melhor aceita. É o começo do fim de uma sociedade que produzia sofrimento graças ao jogo da repressão, do interdito, da miséria sexual. O destino individual se sobrepõe ao familiar ou coletivo. Condições econômicas, o crescimento da vida urbana e do individualismo autorizam uma tal transformação. Começa a caminhada para uma nova definição de casal: “ser livre junto”. Para melhorar o quadro geral, o Viagra, milagrosa pílula azul, aterrisa aqui com grande estardalhaço. Põe um fim à dolorosas injeções, bombas a vácuo, centros de macumba e simpatias curativos usadas para afastar o medo de falhar. Se até então a vergonha cobria o assunto, o tema passa a invadir a mídia e congressos de Medicina

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Para a família, o aumento da participação feminina no mercado trouxe pelo menos duas mudanças: o homem perdeu o status de único provedor; a mulher, a resignação. À medida que ela se tornou financeiramente mais independente, ficou também menos disposta a suportar uniões infelizes. E agora parece buscar, sobretudo, qualidade na vida a dois.

Nas últimas décadas teve início um outro movimento, fruto de séculos de transformações: o que procurou separar a sexualidade, o casamento e o amor. Foi o momento de transição, – muito lenta – entre o amor idílico dos avós para a sexualidade obrigatória, dos netos. Ninguém mais se casa, sem “se experimentar”; jovens consideradas por seus parceiros “frígidas” são descartadas dos jogos amorosos; as mulheres começam a discutir e a falar sobre orgasmo. O domínio da reprodução, graças à pílula vai consolidar esta liberação. A ciência vai se impondo sobre a idéia de pecado sexual.

As coisas mudaram. Apesar dos riscos da AIDS, a sexualidade desembaraçou-se da mão da Igreja, separada da procriação graças aos progressos médicos, e mais, ela foi desculpabilizada pela psicanálise e mesmo exaltada. Hoje, a grande ausência de desejo é que é culpada. O casamento de papel passado não é mais obrigatório e ele escapa às estratégias religiosas ou familiares; o divórcio não é mais vergonhoso e os casais têm o mesmo tratamento perante a lei. A realização pessoal se coloca acima de tudo: recusamos a frustração e a culpabilização. Mas tudo isto são conquistas ou armadilhas? Os historiadores de amanhã, o dirão.

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– Mary del Priore.

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  1. Solange

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