Crianças: os primeiros cuidados no Brasil Colônia

A socialização do nascimento fazia-se através de cartas trocadas entre parentes ou da notícia boca a boca: “Seja-nos uma e mil vezes parabéns o feliz nascimento de meu querido neto e o bom sucesso de minha querida filha”, escrevia, em 1771, um esfuziante marquês de Lavradio, vice-rei da capitania do Rio de Janeiro, ao filho em Portugal! O nascimento significava, desde a noite dos tempos, uma vitória contra a morte.

Os primeiros cuidados com o recém-nascido eram antigos. O corpinho molengo era banhado em vinho ou cachaça, limpo com manteiga e outras substâncias oleaginosas, e firmemente enfaixado. A cabeça era modelada com massagens e o umbigo recebia óleo de rícino com pimenta, para fins de cicatrização. Coroando os primeiros cuidados, era fundamental o uso da estopada: “cataplasma confeccionado com a mistura de um ovo com vinho”, aplicado a uma estopa que, por sua vez, era presa por um lencinho à cabecinha do pequeno para “fortificá-la”. As mães indígenas preferiam banhar-se no rio com os rebentos. As africanas costumavam esmagar o narizinho dos pequenos, dando-lhes uma forma que lhes parecia mais estética. Os descendentes de nagôs eram enrolados em panos embebidos em uma infusão de folhas, antes ingerida pela parturiente. O umbigo recebia as mesmas folhas maceradas e, num rito de iniciação ao mundo dos vivo, imergia-se a criança três vezes na água.

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Pouco a pouco, os manuais de medicina ensinavam às mães a envolver os filhinhos em “mantilhas suaves e folgadas” em vez de apertá-los em faixas capazes de estropiar os tenros membros. Sugeriam, ainda, que se substituíssem as massagens com óleos por “água e sabão”, e que a estopada fosse trocada por “barretinho ou touca de pano branco”, como aconselhava Francisco de Melo Franco. Os médicos já davam grande ênfase ao asseio corporal, mas as mães, por sua vez, cuidavam para preservar a função simbólica da sujeira do corpo infantil como um modo de proteção contra o mau-olhado. Partes como o umbigo ou as unhas, que poderiam ser utilizadas para bruxarias contra os filhinhos, eram cautelosamente enterradas no quintal. Já a urina e os primeiros excrementos, considerados santos remédios e poderoso exorcismo, eram usados com cuidado para curar manchas ou infecções de adultos.

Doutores vigiavam com atenção o cardápio servido à pequena infância. A ênfase no leite era total, não só por ser “mais saudável”, mas porque “para qualquer doença é extremado remédio a mama da mãe”, como já explicava Alexandre de Gusmão em 1685. As mães, para garantir o leite, portavam, por sua vez, “contas de leite”: contas de louça em branco leitoso que, por aproximação, garantiam a fartura do leite de peito. Tudo indica que o hábito indígena do aleitamento até tarde tenha incentivado a amamentação na colônia, pois o viajante francês Jean de Léry notara, em 1578, que as mulheres americanas amamentavam diferentemente das europeias, pois estas, “embora nada as impeça de amamentar os filhos, cometem a desumanidade de entregá-los a pessoas estranhas, mandando-as para longe, onde muitas vezes morrem sem que o saibam as mães”.

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Além do leite, era comum darem-se às crianças “alimentos engrossados com farinha”, o que, segundo Melo Franco, causava “azedumes, lombrigas, obstruções do mesentério, opilação do estômago, inchações do ventre inferior, ventosidades, numa palavra, todos os sintomas convulsivos”. A lista devia bastar para que se desencorajasse essa dieta, considerada inadequada aos pequeninos. Porém, as crianças eram cevadas desde cedo com toda a sorte de papinhas, por uma única razão: as mães queriam fortificar logo os bebês, evitando o risco de perdê-los nos primeiros meses.

A passagem da alimentação mista para a semissólida operava-se com infinita precaução. A técnica de pré-digestão de alimentos embebidos na saliva dos adultos significava muito mais um cuidado do que falta de higiene. Na tradição africana, até os três anos, as crianças comiam pirão de leite de manhã, além de farinha seca com açúcar bruto; leite com jerimum ou escaldado de carne ao almoço. O prato de resistência era o feijão cozido, servido com farinha e machucado à mão. Leite de cabra era considerado poderoso fortificante infantil. Faltando leite à mãe, alugava-se uma ama de leite negra (isso no caso das famílias de posses, já no início do século XIX) ou entravam em cena as papinhas mais variadas. De acordo com a economia caseira, o bebê recebia papa de farinha de mandioca, leite de gado e açúcar, papa de goma, araruta, banana machucada, creme de arroz e fubá de milho, tudo empurrado a dedo, o indicador em anzol, na boquinha faminta. Dava-se mesmo leite de coco, destemperado na água com açúcar. A preocupação materna era a de “arredondar” a criança; o critério não era alimentá-la, mas dar-lhe de comer! Contudo, os jovens intestinos, ainda preguiçosos, e o diminuto estômago, despreparados para receber tantos alimentos grosseiros, incentivavam a gastroenterite a cobrar alta porcentagem de pequenas vidas no primeiro ano. É bom não esquecer também que essas pequenas vidas estavam ligadas estreitamente à evolução do sistema econômico. A criança era a vítima privilegiada das crises alimentares, das tensões sociais, das epidemias. As diferenças sociais acentuavam, por sua vez, as chances entre ricos e pobres; os últimos, sem dúvida, mais vulneráveis e adoentados. – Mary del Priore.

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“Madona Litta”, atribuída a Leonardo da Vinci. 

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  1. Miriam Melo

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