Comércio florescente, alforrias, missas e um pedaço de fachada

Por Aloysio Clemente Breves Beiler.

Um passeio pelas ruas centrais do Rio, admirando a pouca arquitetura antiga que resta na cidade, me leva à reflexão de como teria sido a vida dos cariocas num tempo mais remoto e não tão distante. Por conta do trabalho numa empresa próxima à rua Marechal Floriano, coloquei algumas vezes meu carro num estacionamento que fica no número 209. Do lado direito, apenas uma parede muito antiga que restou de uma fachada e uma entrada de carros, para quem chega da Central do Brasil.

Ao entrar, deixando o pensamento voltar ao passado, reconstruo o belo sobrado residencial onde residiu por algum tempo Dona Ana Clara de Moraes Costa. Filha dos barões do Piraí, sobrinha do “rei do café” Joaquim Breves, e uma das herdeiras das fortunas do Vale do Café Fluminense, Dona Ana morreu em 28 de novembro de 1876, deixando em testamento uma fortuna e a alforria pelo menos 20 escravos: Reginaldo, com 3 apólices da dívida pública de mil réis cada; Adriana com 2 apólices. Também libertou: João, Bibiana, Elesbão, Henriqueta e Ernesto, pardo, que deveria ficar com sua filha Cecília, obrigando-a a educá-lo e aprender o ofício de boticário.

Aplacando sua consciência e tendo a certeza do caminho do Céu, seu testamenteiro, cumprindo suas exigências, mandou celebrar 650 missas: por sua alma; pelas almas de seus pais, irmãos, tios, cunhados, parentes e compadres, maridos (foi casada duas vezes), escravos e purgatório. No dia de seu enterro mandou distribuir uma boa fortuna aos pobres e aos escravos.

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Uma de suas filhas, Ana Clara, se casou com o fidalgo russo Maurice Haritoff e foi a grande dama dos salões imperiais, promovendo festas em seu palacete em Laranjeiras e em sua fazenda Bela Aliança, em Piraí, RJ. Chamada de condessa Haritoff, Ana Clara Breves de Moraes Costa morreu muito jovem e ficou e eternizada numa tela de grandes dimensões, de autoria do alemão Richter, em exposição no Museu Nacional de Belas Artes.

Para sua filha Rita deixou o imóvel do número 209 da Rua Larga de São Joaquim. Em pouco tempo, Rita vendeu a casa de dois pavimentos com quintal nos fundos que serviu a diversos propósitos: residiu um professor que fundou um colégio, funcionou uma associação comercial, foi vendida e alugada sucessivamente até a sua demolição.

As transformações do progresso não me impedem de imaginar a história da famosa rua, que se valia das bestas movidas a capim puxando os bonds da Carris Urbanos que eram a força motriz vigente. Agora, circulam os automóveis, nossas “bestas atuais”. Perdemos o esterco, ganhamos rapidez, fumaça e poluentes.

Durante algum tempo, por conta da proximidade com o porto, do trotoir intenso de prostitutas, ladrões, escravos, jogadores e capoeiras, a rua ficou com má fama. Hoje, na barulhenta via, o comércio de louças e ferragens progride, talvez atendendo à simpática quadrinha publicada no jornal Estação em dezembro de 1900:

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 Que minha face empalideça e encove, si eu minto, quando digo a toda a gente, que só se compra louça de patente, na rua Larga, cento e vinte e nove.

Continuo na minha caminhada e chego ao Largo de Santa Rita, um templo de fé, exemplo grandioso do barroco-rococó, onde devotos rezam e acendem velas, e na rua, os não menos cristãos fazem uma pausa, para a sardinha frita e chope gelado, abençoados também.

 

Aloysio Clemente Breves Beiler

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Baú da Rua Larga – Folha da Rua Larga no. 42

Instituto Cultural Cidade Viva – Rio de Janeiro

3 Comentários

  1. Renato C. Azevedo Moraes

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