Com açúcar, sem afeto.

Por Dirce de Sá Freire.

A História é grande aliada na compreensão do presente; facilita o entendimento dos fenômenos sociais, políticos e econômicos da atualidade. No que diz respeito aos aspectos psíquicos das relações humanas, ela também ajuda a conhecer melhor o percurso de cada indivíduo. É a trajetória de cada um, que, traduzida em história afetiva do sujeito, explica os motivos que levam uma pessoa a fazer determinadas escolhas.

Refletir sobre os transtornos alimentares, sob a ótica da História, permite ampliar a questão para além das exigências estéticas que invadem a atualidade. Essa linha de raciocínio remete à importância de nos debruçarmos, por exemplo, sobre a contribuição da História da Alimentação na compreensão das desordens na forma de se alimentar hoje. Ela fornece um enfoque singular sobre a questão, mostrando que a história da humanidade revela, primordialmente, uma história de fome. Tomando o exemplo da Europa Ocidental, depara-se com a escassez alimentícia que imperou durante o período da Idade Média, quando a peste negra, por meio da figura repugnante do rato, devastou os campos, disseminando a fome em larga escala. A psicanálise ensina que as dificuldades com a alimentação podem estar enraizadas nas manifestações inconscientes que Winnicott chamou de agonias impensáveis e que, para o leigo, poderia se equiparar a um medo primitivo de morrer de fome. É a história individual reproduzindo, filogeneticamente, o que foi vivido na História.

O passado colonial brasileiro revela uma “história de gente gorda”, em que gordura era sinônimo de formosura, tornando-se a base de sustentação para que a barriga do burguês viesse a significar status e prosperidade. Na medida em que a ingesta gordurosa vai “acumulando” adeptos, constata-se uma mudança gradativa do lugar social ocupado pelos gordos. A obesidade perde seu prestígio, inquestionável no passado. Houve um tempo em que era bom ser gordo, por mais distante que possa parecer aos sujeitos que vivem no século XXI. E foi em meio aos inúmeros excessos que marcam o crepúsculo do século XX e o alvorecer do XXI que nossa sociedade se viu na iminência de ressignificar seus conceitos de beleza e estética.

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Em 1975, a obesidade foi definida como uma doença crônica, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) a incluiu entre seus critérios nosológicos. Diante da dimensão que essa doença adquiriu na atualidade, a História facilita sua compreensão, na medida em que permite que se debruçe sobre sua origem. Foi com F. Braudel, herdeiro de Febvre e Bloch, com os conceitos de cultura material, que a História da Alimentação ganhou fisionomia definitiva no campo da pesquisa.

A história da gastronomia explica-se, pelas manifestações culturais e sociais, como espelho de uma época. Nesse sentido, o que se come é tão importante quanto quando, onde, como e com quem se come. Enfim, esse é lugar da alimentação na História, que espelha a vida e cria rituais que legitimam o compartilhar como necessidade de transmissão de valor.

Corrobora nossa visão o fato de Gilberto Freyre, em Açúcar, de 1939, oferecer grande contribuição para o entendimento da identidade nacional a partir da civilização do açúcar no Brasil – a sacarocracia –, cujo tema passa tanto pela História quanto por várias outras áreas do conhecimento, como a Sociologia ou a Antropologia, deixando marcas nos hábitos alimentares do país.Por outro lado, tem-se também a contribuição de Mark Kurlansky, autor do livro intitulado Sal: uma história do mundo, mostrando como o sal também esteve sempre presente em quase todos os lugares e explicando o fato de, durante milênios, ter sido sinônimo de riqueza. Ele foi o responsável pela criação de rotas comerciais, que desenvolveram impérios e promoveram revoluções, e tornou-se instrumento comum de comércio e câmbio. Açúcar e sal, temperos da vida, marcaram lugar significativo na História.

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A partir do final dos anos 1970, multiplicaram-se os estudos dedicados às práticas alimentares dos indivíduos em contextos e períodos históricos diferentes, apontando para a importância desse entrelaçamento para a compreensão dos transtornos alimentares.

A importância dos rituais é vital, pois são eles que permitem fazer do alimento um elemento fixador psicológico no plano emocional, como demonstra Câmara Cascudo, em seus estudos sobre as especificidades da sociedade brasileira.Comer certos pratos é ligar-se ao local ou a quem o preparou. A vida atual não fornece o tempo necessário para o relacionamento com a comida, degustando-se e apreciando-se o sabor do que é ingerido, mastigando-se devidamente o alimento para permitir que a digestão possa começar bem sua função, uma vez que esta, como se sabe, começa na boca. Não há tempo de mastigar; engole-se rapidamente e promovem-se indigestões que se transformam em camadas adiposas, fruto da pressa dos tempos pós-modernos.

A cozinha e seus aspectos ricos também merecem ser destacados, pois, segundo Carlos Roberto Antunes dos Santos, espelha a sociedade, revelando uma imagem desta, em que transparecem as relações de gênero, de geração e a distribuição das atividades. A cozinha traduz uma forma de se relacionar com o mundo, apresentando grande riqueza nas relações sociais e fazendo com que a mesa se constitua, efetivamente, em um ritual de comensalidade. Não sem motivo há unanimidade em torno da crença de que a cozinha é sempre o melhor lugar da casa, onde os membros da família escolhem se reunir.

As refeições feitas em conjunto, em casa, com horário determinado e um cardápio planejado, estão se tornando cada vez mais raras. A sociedade de consumo em massa faz com que se desestruturem os sistemas normativos e os controles sociais que tradicionalmente regiam as práticas e as representações alimentares.

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Os rituais estão perdendo seu lugar de transmissão de costumes e, consequentemente, de preservação de nossa cultura. Não se acha mais importante comparecer ao velório daqueles que morrem, esquecendo-se que aquele momento serve para que se possa externar, vivenciar e atravessar aquela dor na companhia daqueles que nos são caros. Da mesma forma, o comer em torno da mesa tem uma função importante no compartilhar afetos e costumes. Questionam-se muito as novidades, mas não há questionamento sobre os prejuízos que algumas inovações podem trazer para o cotidiano psíquico.

Mudanças de hábitos alimentares nem sempre são benéficas, como os estudos e as pesquisas têm demonstrado em relação ao fast-food no Brasil. Seria um novo padrão alimentar a se delinear, mas com sérios prejuízos na dieta tradicional do povo brasileiro. O arroz, o feijão e a farinha de mandioca, que foram, desde o século XVIII, a base do cardápio da maioria da população, perdem cada vez mais espaço para os produtos industrializados, com maior valor agregado e bem menor valor nutritivo. Nos últimos dez anos, o consumo anual de feijão caiu de 12 kg por brasileiro para 9,5 kg, e a farinha passou a ocupar o 38o lugar no mercado alimentar. Essa situação é muito grave, porque prejudica enormemente a base da alimentação do brasileiro, em especial da população menos favorecida.

A História pode ser o fundamento para a compreensão dos transtornos alimentares, fornecendo uma ajuda imprescindível para a manutenção de um peso saudável.

(Texto extraído de “História do Corpo no Brasil”, Ed Unesp).

dica2joia18

Os padrões estéticos ligados à obesidade mudaram com o tempo; retrato de uma senhora brasileira do século XVIII. 

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  1. Sara

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