Botânica e bruxaria a serviço da saúde feminina

Além dos procedimentos médicos, encontramos no universo
de mazelas femininas a utilização da botânica, aproximando a mulher sempre
mais de uma concepção analógica com o universo. Plantas cujas formas se assemelhavam ao órgão feminino ou cujo emprego aparecia nas mezinhas e chás caseiros compunham uma farmacopeia doméstica, que terminava por solidarizar mulheres na preparação e transmissão de um saber oral sobre o corpo e seu funcionamento.

Aires de Casal, em 1817, refere-se a uma planta “a que o vulgo chama malícia-
de-mulher”, segundo ele “sarmentosa, espinhosa, de folha miudíssima” que se
fechava quando tocada. Bem antes, em finais do século XVII, Bartolomeu Monardes observava que o goembeguaçu era uma erva que muito servia “aos fluxos de mulheres”. O suco de sua casca aplicado, ou o defumadouro “em a parte, logo estanca”. Um Manual de símplices, manuscrito do século XVIII, demonstrando imensa familiaridade com a Colônia por suas descrições, recomendava “raiz-de-queijo” para virem as regras às mulheres e para acidentes uterinos. Bernardo Pereira recomendava verônica para aquelas que lançassem “sangue pela urina”, como acontecera com uma sua paciente que recebera “muitos golpes com um pau que lhe dera seu marido”.

Outro manuscrito encontrado na Biblioteca Nacional de Lisboa, redigido no
século XVII, dá melhor dimensão dessa botica achada facilmente na horta ou
no quintal, típica do ‘saber-fazer’ feminino sobre o seu próprio corpo: “língua-devaca
ou alface silvestre metida dentro da natura atrai a criatura do ventre, [e] […]
suas folhas bebidas com vinho restringem o ventre”. O lírio amarelo, “sua raiz
pisada, bebida ou aplicada à natura com mel e um pouco de lã, purga a aquosidade
da madre”. A manjerona “metida na natura provoca o mênstruo, enxuga
corrimentos”. A murta mostrava-se eficiente quando de fortes hemorragias, e o
nardo servia para inflamações.

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Tal botica, que desde a Idade Média permitia a curandeiras e benzedeiras
atenderam às necessidades de populações carentes de socorro médico, tinha tanto o poder de curar quanto o de adoecer pessoas; ervas testadas desde então, como a beladona, são ainda hoje utilizadas na farmacopeia contemporânea. A crença na eficácia dessa medicina natural era tão arraigada que em 1722 um certo João Lopes Correia curava “virgindade corrupta” com uma mistura de “pedra-ume, esquinanto, folhas de lírio, de acipreste, balaustrias, cascas de romã, raiz de bolotas”, com as quais se fazia um “cozimento”. Vale lembrar que a Igreja perseguia como bruxas as mulheres que receitavam curas para himens dilacerados, enquanto as fórmulas dos doutores se difundiam com caução científica.

Um manuscrito, na Colônia, recomendava desde chifre-de-veado em pó para
“a madre saída do lugar” a avenca cozida, usada como emplastro, e a própria urina
da doente, tomada por via oral. Mulheres e suas doenças movimentavam-se num
território de saberes transmitidos oralmente, e o universo vegetal encontrava-se
cheio de signos dessas relações femininas com as técnicas hortícolas e com o espaço
do quintal. Era nele que, além de se colherem as ervas para as curas, jogavam-se as
águas com que se lavavam as roupas sujas dos mênstruos, as mesmas que lavavam
os mortos e os recém-nascidos. Além de constituir-se também “num espaço da
economia familiar, o quintal era principalmente território do prestígio da cultura
feminina. Cultura feita de empirismo, oralidade, memória visual e gestual que no
Antigo Regime começa a ser descrita e escrita pelos médicos.

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Tamanha relação com as ervas e as águas permitia que as mulheres exprimissem o seu conhecimento da vida, experimentassem os mistérios da geração vegetal e os relacionassem com os ciclos lunares. Junto a essa concepção morfológica da natureza, a presença das pedras e dos minerais também foi importante quando suas formas e estruturas permitiam metáforas com o corpo feminino. O Médico popular, redigido no Brasil, recomendava vivamente a ação da “pedra quadrada” com “bosta de boi fresca com mel de pau”, em emplastro para a barriga de mulheres que sofressem com a retenção de urina. Monardes explicava que esta pedra, denominada quadrada ou candor, tinha ação protetora sobre os “achaques, afogamentos da madre”, bem como sobre a melancolia. Recomendava ainda a “pedra-ímã ou galbano” cuja função era manter a madre em seu respectivo lugar.

A medida que a intimidade com a natureza e com a botica do quintal se transmitia
de mães para filhas resistindo à taxinomia que faziam os médicos, a Igreja
procurava substituir esse relacionamento mágico por outro, piedoso. Santa Sabina,
mártir, era indicada pelo pregador Angelo de Sequeira em 1640, como protetora
para o “imoderado fluxo de sangue”, e Nossa Senhora da Lapa constituía-se em
exagerado “remédio para tudo”.

Apoiadas na devoção piedosa ou na relação mágica com as águas as ervas e as
pedras, as preocupações com os chamados ‘males da madre’ apenas acentuavam e
sublinhavam o enorme prestígio que gozava a maternidade. A madre sã era aquela
que, imune, defendida dos achaques, podia procriar. A cultura feminina, transmitida
entre comadres, a medicina e a Igreja imbricavam-se num mesmo objetivo: fazer a
terra germinar… Tornar o úbere fértil.- Mary del Priore (baseado em “Ao Sul do Corpo”).

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“Bruxa e Mandrágora”, de Henry Fuseli. (1812).

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