Bem longe dos romances: namoro e casamento na São Paulo do século XIX

 

        No século XIX, o amor como estímulo para o casamento parece ter ocupado lugar de menor importância, aparecendo como uma consequência da vida cotidiana. Nos testamentos paulistas, por exemplo, são mais comuns as referências à estima, dedicação e gratidão do que realmente amor, como o definimos em nossos dias. Carinho e amor são aspectos relevantes nos casamentos de pobres e libertos. Talvez, por isso, estas uniões não se desfizessem com facilidade. Os padrões de moralidade eram mais flexíveis e havia pouco a se dividir ou oferecer numa vida simples. Entre ricos, a condição a que estava sujeita a mulher, com estreitas oportunidades de vida social, dificultava uma maior participação na escolha do par. Os raros contatos que precediam a cerimônia não ajudavam.

Os noivados, curtos e que nem sempre sucediam ao namoro, eram acompanhados de pouquíssimas entrevistas. Vejamos o que sobre isto nos contam as memórias do Conselheiro Albino José Barbosa de Oliveira. O quadro seria impensável nos dias de hoje. Em primeiro lugar, impressiona como o jovem recebe a notícia. Noivo, de uma moça que nunca vira, de um dia para o outro, graças a uma proposta da Marquesa de Valença, proposta aceita por seu pai e pela sobrinha da dita marquesa, – a futura noiva – Oliveira se compromete no que considera uma união aceitável:

“Estava eu muito doente – conta ele – de cama quando essa carta foi recebida e foi minha irmã quem a leu. Eu pus-me a chorar, porque apesar de desejar e precisar muito me casar, e de parecer este casamento muito aceitável, lamentava a perda da minha liberdade e o peso que ia tomar sobre mim.

Com efeito, entre meio dia e uma hora, saí acompanhado pelo Souza Queiroz à casa de tio Luiz Antonio, onde morava minha noiva e onde estava hospedado o marquês de Valença, então Conde, com toda a sua família. Apareceu-me logo a minha noiva acompanhada pela Senhora Marquesa de Valença, com vestido de manga curta. Estendi-lhe a mão, apertei-lha e beijei-lha […] A minha noiva agradou-me e suas maneiras acanhadas eram muito próprias da educação que tinha recebido e de sua posição. Achei-a somente mais alta do que esperava a vista das informações. Pediu-me o Marques que aparecesse todos os dias antes do jantar e de noite para fazer a corte a minha noiva, enquanto não se marcava o dia para a celebração do sacramento que não devia tardar…”.

            Após cinco vistas consecutivas na mesma semana, celebrou-se o casamento. Nesses raros momentos, confessa o Conselheiro, ele procurara conversar e ser amável com a futura esposa, sem que tivesse a chance de estarem a sós. Em cada encontro, testemunhas se encarregavam de brecar toda e qualquer intimidade. A vigília sobre os noivos deveria determinar a posição  social da noiva. Ela tinha que se portar diferentemente de suas contemporâneas, pertencentes às camadas subalternas, para quem brincadeiras amorosas e mesmo sexo eram tolerados antes do casamento. As bodas foram realizadas na casa da noiva, como era de costume, aos olhos de poucos convidados. Depois é que oficialmente se deu parte do casamento, “a meia cidade de São Paulo e foram muito visitados”.  O luxo e a ostentação da festa íntima em torno das núpcias, confirma a importância de valores então levados em conta. Vamos ouvir o noivo em carta a seu pai:

            “No dia 10 do corrente, casei-me com a Sra. D. Isabel Augusta de Souza Queiroz com plena e geral satisfação. As 6 ¾ da tarde tinha acabado a cerimônia. Assistiram apenas os parentes de minha mulher, todos em grande gala e o Perdigão Filho, por também ser sobrinho do Conde. O Conde estava com a sua Gran Cruz Dignitária, fardão, etc. As senhoras ornadas de pérolas e brilhantes. A minha noiva vinha radiante de brilhantes: o meu retrato pendia-lhe ao colo de um rico colar de brilhantes, que fora de sua mãe; o cabelo era apanhado por uma rica flor de brilhantes, o véu por outra, ainda mais rica, além de brincos, anéis, etc., tudo de brilhantes: as pulseiras eram pérolas com feixes de brilhantes. Tudo isto aqui está debaixo dos meus olhos, arranjado e guardado em sua competente caixa. Quando a sua filha Isabel apareceu, dirigi-me a ela e quando ia apertar-lhe a mão, na forma de costume, deu-me ela um rico solitário, cujo valor não sei, porém de certo vale mais de 600$00 réis: este trago-o no dedo até hoje e era de uso de seu pai. O Bispo deu a licença mais ampla que é possível até para recebermos as bênçãos da Quaresma, e tudo grátis e pediu desculpas, ou antes, mostrou-se muito sentido por não ter podido vir em pessoa fazer o ato, pois além de 81 anos está muito doente.

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Registros de cerimônias de noivados e casamento são poucos. Aqui e ali, recolhe-se uma informação. O médico Manuel Peixoto de Lacerda Werneck, filho do barão de Paty do Alferes, para impressionar a noiva, menina viajada e poliglota, deu-lhe, no dia do noivado, um ramo de flores em meio ao qual pusera um anel de brilhantes. A partir do relato de uma viajante francesa fica-se sabendo que os cortejos saíam de casa e com aparato dirigiam-se à igreja mais próxima. Os convidados, entre gente graúda, eram muitos. As roupas, segundo ela,  ofuscantes de bordados, enfeites, cruzes e diamantes que adornavam os colos. As senhoras, em trajes de baile muito elegantes – baile que deveria ocorrer depois da benção nupcial – enchiam a nave. Não faltavam detalhes sofisticados: “Em certo momento quando o órgão soou as mais doces harmonias, o incenso se elevou do altar em nuvens aromáticas, do alto de uma galeria começou a cair uma chuva de pétalas de rosas, sobre os esposos. Que ideia mais graciosa e tocante!” anotou a francesa Virginie Leontine B., em 1857. No dia do casamento da princesa Francisca com o príncipe de Joinville, um espectador anotou que todas as damas estavam vestidas à brasileira, com mantôs amarelos e verdes. “A Princesa Francisca era a única vestida como mocinha francesa, toda de branco, sem mantô, com o véu branco e flor de laranjeira nos cabelos”. Havia pouca gente e as damas choravam de tempos em tempos…depois da leitura da Ata, – ou seja, do contrato nupcial -, o barão de Langsdorff disse “a fórmula do casamento”: “Eu vos declaro unidos pelo matrimônio, e passou-se à capelinha onde foi rezada uma missa”. 

            Em certas regiões onde os costumes patriarcais eram fortes, conta Gilberto Freyre, nos dias de casamento foi costume escancarar-se a alcova ou quarto dos noivos às vistas e até à visita do público, que podia admirar de perto o primor das sedas, das rendas, dos bordados das colchas, sentir o macio dos colchões, prever as doçuras nupciais que sobre eles teriam lugar depois das cerimônias e festas. Os padrinhos tornavam-se parentes dos pais dos noivos e a eles, os afilhados, (ela e ele), deviam tomar a benção como tomavam aos pais, aos avós e aos tios. Deles esperava-se proteção no caso de faltarem os pais.

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