Beleza feminina: instrumento do pecado?

        A mulher perigosa por sua beleza, por sua sexualidade, por sua associação com a natureza, inspirava toda a sorte de preocupações dos pregadores católicos. Não foram poucos os que fustigaram o corpo feminino, associando-o com um instrumento do pecado e das forças obscuras e diabólicas que ele representava na teologia cristã:

      “Quem ama sua mulher por ser formosa, cedo lhe converterá o amor em ódio; e muitas vezes não será necessário perder-se a formosura para perder-se também o amor, porque como o que se emprega nas perfeições e partes do corpo não é o verdadeiro amor, se não apetite, e a nossa natureza é sempre inclinada a variedades, em muitos não durará”, admoestava um pregador resmungão. O enfeamento do corpo estava articulado com a teoria punitiva do uso deste mesmo corpo. Os vícios e as “fervências da carne”, ou seja, o desejo tinha como alvo o que a Igreja considerava ser “barro, lodo e sangue imundo”, onde tudo era feio porque pecado. Isso, porque a mulher – a velha amiga da serpente e do Diabo – era considerada, nesses tempos, como um veículo de perdição da saúde e da alma dos homens.

      Aquela “bem parecida”, sinônimo no século XVII, para formosa, era a pior! Logo, modificar a aparência ou melhorá-la pelo emprego de artifícios implicava em adensar essa inclinação pecaminosa. Mais. Significava, também, alterar a obra do Criador que modelara seus filhos, à sua imagem e semelhança. Interferência, impensável, diga-se de passagem. Vários opúsculos circulavam tentando impedir as vaidades femininas. Os padres confessores, por exemplo, ameaçavam com penas infernais:

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       “Estar à janela cheia de besuntos, levantar os fatos (os vestidos) quando não há lama, levantar a voz entoando falsete, por ostentar melindre; tingir o sobrolho com certo ingrediente e fazer o mesmo a cara com tintas brancas e vermelhas, trazer boas meias e fingir um descuido para mostrá-las, rir de manso para esconder a podridão ou a falta dos dentes e comer mal para vestir bem”.

       Apesar de tantas advertências, a mulher sempre quis ser ou fazer-se bela. Se a Igreja não lhe permitia tal investimento, a cultura lhe incentivará a forjar os meios para transformar-se. Os dispositivos de embelezamento, assim como o cortejo de sonhos e ilusões que os acompanhavam eram de conhecimento geral. O investimento maior concentrava-se no rosto, locus, por excelência, da beleza. As outras partes do corpo eram menos valorizadas. Consequência direta desta valorização, o embelezamento facial recorria à certa incipiente técnica cosmética. A preocupação maior era, em primeiro lugar, tratar a pele com remédios. Seguia-se a maquilagem com pós, “besuntos” e “tintas vermelhas e brancas”.

      Desabrochava, nessa época, uma visão médica da cosmetologia, visão que foi fortemente retomada no século XX pelos fabricantes de cosméticos. Assim como hoje, há quatrocentos anos atrás, a ideia fundamental consistia em esconder os males de maneira artificial. Afecções cutâneas e má coloração da tez eram considerados preocupantes. Para combatê-los usou-se, até o aparecimento da química, certa farmacopeia doméstica à base de produtos que, ainda hoje vigoram: cera de abelha, mel, amêndoas doces, gordura de carneiro, água de rosas, leite de pepinos, glicerina, benjoim.

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      A partir do século XVI, o crescimento das trocas econômicas e comerciais incrementou o aparecimento de especiarias que vinham do Oriente ou da América para a Europa no fundo das naus: limão, arroz, açúcar, manteiga de cacau que foram acrescidos ao receituário tradicional. Havia, contudo, produtos mais prosaicos. Por exemplo, o “leite de mulher parida” era considerado eficiente para a queda de cabelo, sinais e cicatrizes, erisipela, icterícia e “cancro”.

      Os excrementos de animais, mais conhecidos como “flores brancas”, foram largamente utilizados para clarear e cicatrizar sinais na pele. Excrementos, diga-se, que podiam ser tanto de sofisticado crocodilo africano quanto de prosaico cachorro doméstico. A urina, poderoso cicatrizante, idem. É obvio que tais produtos não eram aplicado sobre a pele, sem certos cuidados. Cozimentos, exposição ao sol, macerações buscavam decompor ou desmaterializar o componente original A destilação, apropriada da alquimia, alimentava o imaginário de pureza associado aos tratamentos cosméticos. Era preciso purificar para embelezar. Matérias “puras, límpidas, essenciais, eram usadas para embranquecer a pele “azeitonada”, considerada “feia” pelos estrangeiros de passagem. Ferros aquecidos em cinzas quentes ajudavam a encrespar os cabelos. Mas, não esquecer: “embelecar” era sinônimo de “enganar”.

      O limite entre a cosmética saudável, aquela capaz de sanar males e doenças e a cosmética para “embelezar”, era estreito. As mulheres resvalavam de uma para a outra, sob o olhar sempre condenatório de maridos, padres e médicos. A crítica regular do uso excessivo de tintas, besuntos, cremes e unguentos se acumulava. Perseguia-se a possibilidade de vê-las se assemelhar às cortesãs ou prostitutas. O critério, portanto, era o “muito” ou “pouco” maquilada, critério, esse, que variou ao longo dos tempos. Basta pensar no “meio-ruge” que as mulheres usavam, ao deitar-se, no século XVIII! Nada disso, porém impediu de um viajante francês de vê-las penteadas com fitas e registrar: “O que mais lhes interessa, porém, é estarem bem empoadas”.

  • Texto de Mary del Priore. “Histórias da Gente Brasileira: Colônia (vol.1)”, Editora LeYa, 2016.
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“A Vênus do Espelho”, de Velázquez.

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