Beleza e vaidade nos tempos coloniais

Apesar da pobreza material que caracterizava a vida diária no Brasil colônia, a preocupação feminina com a aparência, não era pequena. Só que ela era controlada pela Igreja. A mulher perigosa por sua beleza, por sua sexualidade, por sua associação com a natureza, inspirava toda a sorte de preocupações dos pregadores católicos. Não foram poucos os que fustigaram o corpo feminino, associando-o com um instrumento do pecado e das forças obscuras e diabólicas que ele representava na teologia cristã:

“Quem ama sua mulher por ser formosa, cedo lhe converterá o amor em ódio; e muitas vezes não será necessário perder-se a formosura para perder-se também o amor, porque como o que se emprega nas perfeições e partes do corpo não é o verdadeiro amor, se não apetite, e a nossa natureza é sempre inclinada a variedades, em muitos não durará”, admoestava um pregador resmungão. O enfeamento do corpo estava articulado com a teoria punitiva do uso deste mesmo corpo. Os vícios e as “fervenças da carne”, ou seja, o desejo, tinham como alvo o que a Igreja considerava ser “barro, lodo e sangue imundo”, onde tudo era feio porque pecado. Isso, porque a mulher – a velha amiga da serpente e do Diabo -era considerada, nesses tempos, como um veículo de perdição da saúde e da alma dos homens. Aquela “bem parecida”, sinônimo no século XVII, para formosa, era a pior! Logo, modificar a aparência ou melhorá-la pelo emprego de artifícios, implicava em adensar essa inclinação pecaminosa. Mais. Significava, também, alterar a obra do Criador que modelara seus filhos, à sua imagem e semelhança. Interferência, impensável, diga-se de passagem. Vários opúsculos circulavam tentando impedir as vaidades femininas. Os padres confessores, por exemplo, ameaçavam com penas infernais:

“Estar à janela cheia de bisuntos, levantar os fatos (os vestidos) quando não há lama, levantar a voz entoando falsete, por ostentar melindre; tingir o sobrolho com certo ingrediente e fazer o mesmo á cara com tintas brancas e vermelhas, trazer boas meias e fingir um descuido para as mostrar, rir de manso para esconder a podridão ou a falta dos dentes e comer mal para vestir bem.”.

Apesar de tantas advertências, a mulher sempre quis ser ou fazer-se bela. Se a Igreja não lhe permitia tal investimento, a cultura lhe incentivará a forjar os meios para transformar-se. Os dispositivos de embelezamento, assim como o cortejo de sonhos e ilusões que os acompanhavam eram de conhecimento geral. O antropólogo Bruno Remaury lembra que o investimento maior concentrava-se no rosto, locus, por excelência, da beleza. As outras partes do corpo eram menos valorizadas. Conseqüência direta desta valorização, o embelezamento facial recorria à certa incipiente técnica cosmética. A preocupação maior era, em primeiro lugar, tratar a pele com remédios. Seguia-se a maquilagem com pós, “bisuntos” e “tintas vermelhas e brancas”, como já se viu.

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Desabrochava, nessa época, uma visão médica da cosmetologia, visão que foi fortemente retomada no século XX pelos fabricantes de cosméticos. Assim como hoje, há quatrocentos anos atrás, a idéia fundamental consistia em esconder os males de maneira artificial. Afeções cutâneas e má coloração da tez eram considerados preocupantes. Para combatê-los usou-se, até o aparecimento da química, certa farmacopéia doméstica à base de produtos que, ainda hoje vigoram: cera de abelha, mel, amêndoas doces, gordura de carneiro, água de rosas, leite de pepinos, glicerina, benjoim. A partir do século XVI, o crescimento das trocas econômicas e comerciais incrementou o aparecimento de especiarias que vinham do Oriente ou da América para a Europa no fundo das naus: limão, arroz, açúcar, manteiga de cacau que foram acrescidos ao receituário tradicional. Havia, contudo, produtos mais prosaicos. O “leite de mulher parida”, por exemplo, era considerado eficiente para a queda de cabelo, sinais e cicatrizes, erisipela, icterícia e  “cancro”. Os excrementos de animais, mais conhecidos como “flores brancas”, foram largamente utilizados para clarear e cicatrizar sinais na pele. Excrementos, diga-se, que podiam ser tanto de sofisticado crocodilo africano quanto de prosaico cachorro doméstico. A urina, poderoso cicatrizante, idem. É obvio que tais produtos não eram aplicado sobre a pele, sem certos cuidados. Cozimentos, exposição ao sol, macerações buscavam decompor ou desmaterializar o componente original A distilação, apropriada da alquimia, alimentava o imaginário de pureza associado aos tratamentos cosméticos. Era preciso purificar para embelezar. Matérias puras, límpidas, essenciais, são ainda, hoje, associadas à eficácia de certos produtos. A idéia platônica de associar beleza e pureza persistiu, malgrado a passagem dos séculos.

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O curioso é que o limite entre a cosmética saudável, aquela capaz de sanar males e doenças e a cosmética para “embelezar”, era estreito. As mulheres resvalavam de uma para a outra, sob o olhar sempre condenatório de maridos, padres e médicos. A crítica regular do uso excessivo de tintas, bisuntos, cremes e ungüentos acumulava-se. Perseguia-se a possibilidade de vê-la assemelhar-se às cortesãs ou prostitutas. O critério, portanto, era o “muito” ou “pouco” maquilada, critério, esse, que variou ao longo dos tempos. Basta pensar no “meio-rouge” que as mulheres usavam, ao deitar-se, no século XVIII!

Aos cuidados com a beleza do rosto, somaram-se outros, relativos à roupa. O caráter ambivalente dessa última, desvelando ao cobrir, revestindo as partes mais cobiçadas da anatomia, constituía, ao mesmo tempo, um instrumento decisivo e um obstáculo à sedução. Montaigne, protestava: “por que será que as mulheres cobrem com tantos impedimentos, uns sobre os outros, as partes onde habita nosso desejo? Para que servem tais bastiões com os quais elas armam seus quadris, se não a enganar nosso apetite, e a nos atrair ao mesmo tempo em que nos afastam?”. O pudor aumentava a cobiça que deveria atenuar. O escritor francês, Anatole France, criou também uma parábola sobre o tema, em seu A ilha dos pingüins. Um missionário disposto a cobrir a nudez das aves que convertera, resolve vestir uma delas e como essa passa a ser perseguida pelo conjunto de seus semelhantes, loucos de desejo, conclui: “o pudor comunica às mulheres uma atração irresistível”.

Quanto mais, diz Philippe Perrot, afastamos do campo do discurso e do olhar os objetos referidos ao sexo, mais eles invadem e habitam o imaginário”. Em todas as latitudes, o jogo entre roupa e corpo foi uma constante. Suas várias funções, condicionam as formas que implicam em comportamentos, em posturas, em gestos que, por sua vez, influenciam essas mesmas formas e sua função. Sabemos que uma mulher não caminha com saltos altos da mesma maneira do que com chinelos. Da mesma forma, as funções e as formas vestimentares sempre variaram de acordo com circunstâncias, as classes, os papéis sociais. A oposição entre o amplo e o justo, o longo e o curto que traduziam o desconforto ou a facilidade de movimentos reproduziam por exemplo, na Idade Média, as clivagens que separavam nobres e camponeses. Os primeiros, andavam e gesticulavam  no ritmo ditado pela lentidão das cerimônias de corte; os segundos, mostravam uma negligência sublinhada pela vivacidade de seu caminhar e a amplitude de seus gestos; uns manifestavam uma ociosidade digna de seu status, os outros, um envilecido labor manual. Sabemos que, com o passar do tempo, a roupa curta caminhará para um ajuste e encurtamento crescentes até ser considerada, no século XX, funcional. E sua funcionalidade tornou-se um valor de prestígio. A roupa longa, por sua vez, subsistiu como vestimenta de padres, juizes, professores exigindo, por seu caráter solene, certa postura, certo forma de locomover-se. Ela representa, ainda, a idéia simbólica de calma e majestade, reproduzindo o sentimento de gravidade e decoro que estiveram na sua base.

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A roupa, na sua forma, cor e substância significou durante o Antigo Regime, ou seja, entre os século XVI e XVIII, uma condição, uma qualidade, um estado. Não havia dúvidas quanto a isso. Instrumento de regulação política, social e econômica as “leis suntuárias” existiam para manter visíveis os níveis sociais de quem se vestia. O luxo de tecidos e bordados era apanágio da aristocracia. Seus membros não podiam ser confundidos com os das camadas emergentes. Codificando cortes, materiais, tinturas, ela garantia marcas de poder, intensificando-lhes o brilho. Semelhante ao que ocorre, hoje, com o uso de roupas de griffe? Não. Muito mais rígido. A roupa, entre os séculos XV e XVIII tinha um papel político-social. Ela funcionava como signo de hierarquização, de fixidez ou de mobilidade dos grupos. Um exemplo? Em Portugal, judeus, tinham que usar uma carapuça amarela e mouros, uma lua de pano vermelho de quatro dedos, “cosida no ombro, na capa e no pelote” segundo o código de leis conhecido como Ordenações Filipinas. – Mary del Priore.


 

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