A homossexualidade e a Inquisição

Ao contrário do que poderíamos imaginar, muitos casais homossexuais não faziam questão de esconder suas preferências amorosas nos tempos coloniais. Eles protagonizaram – do mesmo modo que os heterossexuais – cenas escandalosas de ciúmes ou demonstrações explícitas de afeto em público. Uma fonte de pesquisa importante são os registros inquisitoriais. A documentação sobre o tema, entretanto, é escassa.

É difícil auscultar os sentimentos e apelos eróticos da sociedade colonial, sendo as fontes tão pouco numerosas, esclarece Ronaldo Vainfas. As da Inquisição, se referem à “palavras de requebros e amores” e a “beijos e abraços”, sugerindo prelúdios eróticos e carícias entre amantes. Atos sexuais incluíam toques e afagos, implicando na erotização das mãos e da boca. “Chupar a língua”, “enfiar a língua na boca” segundo os mesmos documentos não era incomum. Os processos revelam, igualmente, que alguns sedutores iam direto ao ponto: “apalpar as partes pudentes” eram queixas constantes das seduzidas.

Processos de sodomia masculina, por exemplo, revelam amantes que “andavam ombro a ombro”, abraçavam-se, trocavam presentes, e penteavam-se os cabelos mutuamente à vista de vizinhos, desafiando a Inquisição, sua grande inimiga. É conhecido o caso de certo João de Carvalho, um rapaz que ensinava latim e linguagem para os filhos dos moradores de uma freguesia em São João Del Rei, no século XVIII. Apaixonado por um dos seus alunos, lhe mandava bilhetes nos quais dizia: “Luiz, meu amorzinho, minha vidinha! Vinde para o bananal que eu lá vou com a garrafinha de aguardente”.

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Rituais de namoro entre homossexuais não se distinguiam dos demais. Luís Delgado, estanqueiro de fumo em Salvador da Bahia, se tornou conhecido por demonstrar publicamente a paixão que nutria por seus sucessivos amantes, beijando-os na frente de outras pessoas, regalando-os com presentes de fino trato, vestindo-os com “galas”, ou seja, roupas e sapatos caros, andando juntos debaixo de um grande guarda-sol, para escândalo e escárnio de seus inimigos. Era comum a troca de “memórias de ouro”, ou seja, um anel de compromisso. Num arrufo com um deles, certo Doroteu Antunes, de quem morria de ciúmes, ameaçou-o aos gritos, defronte da Fonte dos Sapateiros: “- Com isso me pagais do amor que vos tenho e o muito que convosco gasto, dando-vos dinheiro, vestidos, casas em que morais e tudo o mais que vos é necessário?!”. Outro, Luis da Costa, o tabaqueiro costumava pegar na mão, “dizendo-lhe que era afeiçoado a ele e o queria muito gentil-homem e tinha uma cara como uma dona”.

Outra cena pública, de grande ciúme teve certa Isabel Antônia, apelidada “a do veludo”, referência ao falo que usava nas relações, também moradora em Salvador. Ela tinha conturbada relação com Francisca Luiz, causando grande escândalo na cidade, pela violência e excessivo zelo que tinha com a amante. Numa delas, ao saber que a amiga tinha saído com um homem, dirigiu-se a ela, aos brados de: “velhaca! Quantos beijos dás ao seu coxo (amante) e abraços não dás a mim! Não sabes que quero mais a um cono que a quantos caralhos aqui há”. Disse isso tudo aos berros, pegando-a pelos cabelos, trazendo-a à porta de casa com bofetões à vista dos vizinhos.

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Arroubos não foram incomuns; beijos roubados e furtivas bolinações eram práticas usuais regadas a propostas lascivas e palavras amatórias. Alguns tocamentos podiam ser tímidos, escondendo confessados desejos. Rostos e mãos levemente roçados por dedos ávidos ou mãos apertando outras. Fazer cócegas na palma da mão e por a mão sobre o coração para dizer o querer bem era parte da gramática amorosa Em algumas ocasiões, eram os pés que agiam, ligeiros, a alisarem outros pés. Alguns afagos eram apenas esboçados, a anunciar a vontade de outros mais ousados, enquanto se elogiava a formosura da mulher. Conjugavam-se muito os verbos estimar e querer bem. Câmara Cascudo  estudou o significado de inúmeros gestos que serviam de código de conversação entre namorados, impedidos de expressarem de forma mais declarada os seus sentimentos. – Mary del Priore.

Caravaggio-Bacco

“Baco”, de Caravaggio.

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    • Matos

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