As tradicionais famílias brasileiras e os laços de sangue

Apesar das transformações tecnológicas e crescimento das cidades, sempre fomos conservadores. Nas primeiras décadas do século XX, toda a ameaça ao casamento era alvo de críticas. O divórcio, por exemplo, era considerado “imoral”; “a pior chaga da sociedade”; “só em casos excepcionais e depois de rigorosíssimo processo”. Mesmo anticlericais, influenciados pelo Positivismo, eram contra. 

De fato, apesar das transformações que chegavam, o Código Civil de 1916 mantinha o compromisso com o Direito Canônico e com a indissolubilidade do vínculo matrimonial. Nele, a mulher era considerada altamente incapaz para exercer certos atos e se mantinha em posição de dependência e inferioridade perante o marido. Complementaridade de tarefas, sim. Igualdade entre homem e mulher, nunca. Ao marido, cabia representar a família, administrar os bens comuns e os trazidos pela esposa e fixar o domicílio do casal. Quanta a esposa, bem…esta ficara ao nível de menores de idade ou de índios. Comparado com a legislação anterior, de 1890, o Código trás mesmo uma artimanha. Aos estender aos “cônjuges” a responsabilidade da família, nem trabalhar a mulher não podia, sem permissão do marido. Autorizava-se mesmo o uso da legítima violência masculina contra excessos femininos. A ela cabia a identidade doméstica; a ele, a pública. Mas não sem um ônus: a de ser honesto e trabalhador em tempo integral. Este era o papel social que mais valorizava o homem. Quando a falta de trabalho ou qualquer desastre profissional o impedia de ser o único provedor da família, alguns chegavam ao desespero de suicidar-se. O nome “limpo” do pai e provedor era tudo. Ou como resumiu um contemporâneo de nossos avós: “antigamente, o nome representava muito mais do que hoje; era garantia de pessoa de bem…não é questão de dinheiro, é de costumes…é garantia de caráter”.

A pá de cal veio com um documento do Vaticano assinado por Pio XI. O Pontífice considerava uma “iniquidade abusar da fraqueza feminina” obrigando mães de família a trabalhar “por causa da mesquinhez do salário paterno”. Deixar a esposa ganhar a vida fora das paredes domésticas descuidando de deveres próprios e da educação dos filhos era, na visão machista da Igreja católica, uma vergonha!.

Era indisfarçável o conformismo da maioria das mulheres frente à condição de sujeição imposta pela lei e pelos costumes: serva do marido e dos filhos, sua única realização aceitável era dentro do lar. Sua família, como já disse uma historiadora, era “ninho e nó” ao mesmo tempo. Ninho, pois, proteção contra agressões externas, muro contra a invasão de sua privacidade. Mas, nó, porque secreta, fechada, exclusiva e palco de incessantes tensões. Não era raro que nos penosos e arrastados processos de separação os homens se dissessem humilhados porque as esposas não queriam viver com eles. Invertendo a situação, muitos maridos agressivos e violentos passavam de réu à vítima. A jurisprudência, por seu lado, acreditava que ou “cabia ao homem harmonizar as relações da vida conjugal” – como dizia o jurista Clóvis Beviláqua. Ou que a mulher era muito frágil, inapta, portanto para chefiar a sociedade conjugal.

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No mesmo ano em que foi aprovado o Código Civil da República, publicou-se um manual de economia doméstica com o sugestivo título de O lar feliz. E tome de conselhos, atribuindo a homens e mulheres papéis que a encíclica Rerum Novarum enfatizava em 1891: lugar de mulher era em casa pois só aí ela salvaguardava sua honestidade sexual; só aí, ela garantia a prosperidade da família, só aí ela atendia à sua natureza. De forma edulcorada o autor anônimo retomava o bordão:

“[…] à mulher incumbe sempre fazer do lar – modestíssimo que seja ele – um templo em que se cultue a Felicidade; à mulher compete encaminhar para casa o raio de luz que dissipa o tédio, assim como os raios de sol dão cabo aos maus micróbios […] Quando há o que prenda a atenção em casa, ninguém vai procurar fora divertimentos dispendiosos ou prejudiciais; o pai, ao deixar o trabalho de cada dia, só tem uma ideia: voltar para casa, a fim de introduzir ali algum melhoramento ou de cultivar o jardim. Mas se o lar tem por administrador uma mulher, mulher dedicada e com amor à ordem, isto então é saúde para todos, é a união dos corações, a Felicidade perfeita no pequeno Estado, cujo ministro da Fazenda é o pai, cabendo à companheira de sua vida a pasta política, os negócios do Interior”.

Mas como será que se escolhiam tais “ministros da Fazenda e ministras do Interior”? Um estudo sobre paulistas de “quatrocentos anos” revela que entre as elites perseverava a preocupação com a endogamia, até em função da decadência do grupo, substituído na primeira metade por burgueses estrangeiros e comerciantes enriquecidos. Nome e origem, expressões como “gente como nós” ou “de nossa raça” revelam a preocupação em manter o fechamento do grupo: “ – Uma pessoa como eu, no tipo de família em que nasci, não poderia nunca se casar com alguém que não fosse conhecido, quer dizer de boa família”, esclarece uma “paulista quatrocentona”.

A realidade por trás da frase, ou seja, o desejo da elite de garantir a qualidade por seu sangue, não era apenas uma tradição herdada do século passado ou uma característica paulistana. Mas sobretudo, brasileira. No Rio de Janeiro, Recife ou Belo Horizonte não faltaram os que invocavam genealogias, armas e brasões, nomes importantes ou títulos de nobreza para diferenciar-se pela família e o matrimônio: “ – Procurávamos nos dar com gente que tivesse os mesmos costumes […] não era uma questão de dinheiro, muita gente rica não tinha o mesmo modo de pensar; os mesmos hábitos familiares”. E a desqualificação dos que não faziam parte do grupo era inelutável. “ – Não ter berço” era acusação comum: “ – No meu tempo de Faculdade de Direito já havia moços muito ricos, milionários, já dessa gente nova, dos industriais estrangeiros que estavam fiando ricos”. Em suma, pessoas “diferentes”. E os diferentes tinham que ser evitados para preservar a velha e conhecida endogamia.

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Só de forma muito lenta a resistência aos casamentos com imigrantes europeus e mesmo com migrantes, foi sendo vencida. Apesar de considerados fora da norma, sempre se pensava na absorção do parceiro; “- os imigrantes, se tivessem valor, eram bem recebidos. Meu primo casou-se com a filha de um imigrante. No começo a família resistiu, mas depois ela passou a ser uma de nós…parte de nossa família”. Ou “- tive um namorado que era do Norte e lá em casa procuravam tirar isto da minha cabeça…era considerada uma bobagem casar com rapaz de fora, de longe”.

Mania de paulista decadente, os tais casamentos entre iguais? Não. Entre as primeiras gerações de imigrantes, era, também, comum o casamento intergrupal, pelo menos na primeira geração. O objetivo era preservar tradições, manter rituais comunitários e assegurar certo patrimônio lingüístico e religioso. A figura da “casamenteira” ou shachtene, encarregada de promover o enlace de membros da comunidade judaica ou a prática do casamento arranjado pelos pais, o miai, comum na comunidade japonesa, ilustram a vigência de soluções ardilosas que miravam a manutenção de antigos costumes.

Clubes comunitários, – como, por exemplo, o Círculo Italiano ou a Sociedade Hispano-Brasileira, em São Paulo – associações de socorro mútuo, teatros, sindicatos e templos frequentados por pessoas de uma determinada etnia ou de uma determinada região do país de origem ofereciam a escolha possível para aqueles que preservavam suas microssociedades. Os bairros étnicos também alimentavam os casamentos inter-grupais. Corais, bandas e “kerbs”, na colônia alemã, reuniam jovens casadoiros.  Afinal, as famílias de imigrantes não só simbolizavam um ponto de apoio básico, mas serviam de suporte para os que tinham ficado na terra de origem. As alianças matrimoniais tinham ainda papel estratégico na busca de ascensão social e prestígio. Famílias anônimas, aos milhares, ampliaram seus negócios e seus ganhos, mediante a absorção de parentes distantes mas confiáveis, de genros bem escolhidos e mesmo de conterrâneos escolhidos assumidos como parentes. Descrevendo núcleos de japoneses e seus descendentes na zona rural do estado de São Paulo, às vezes, as famílias abrigavam genros ou parentes jovens da esposa para aumentar seu potencial de produtividade. No Japão, seria inaceitável a convivência de duas linhas de descendência – masculina e feminina – na mesma casa. Em jornais como o Nippo-Brasileiro não é difícil encontrar estórias de miais que deram certo, ou de casais que tiveram que vencer a resistência dos pais para serem felizes. A escola ou a universidade, a mudança para a cidade grande foram elementos importantes para quebrar as regras de endogamia tantas vezes respeitada, onde nem sempre havia amor. Mais havia, dever.

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E neste universo urbano e cosmopolita, como reconhecer uma mocinha casadoira? Simples, ela teria, segundo Abelardo Roças, em 1906, o fetichismo da toilette, o amor da evidência e a “atividade inquietante da abelha”. Mais. Ela teria um olhar mórbido, capaz de fixar dez rapazes ao mesmo tempo; “toda requebros e denguices”, vestida sempre de um tom vivo, com gestos lânguidos que “parecem enlaçar um pescoço idolatrado e invisível, com o busto inclinado até o desequilíbrio  e os quadris saltados para trás à semelhança de uma ave pernalta […] quando vemos esta elegância de cegonha ou de avestruz que caminhou a cidade toda em busca de meio palmo de renda, toda a gente, de todas as bandas, murmura logo: é uma moça casadoira”

Mas as mudanças que o século e a “vida moderna” impunha causaram, por sua vez, reações. Uma sólida barreira feita de opiniões de juristas, médicos e da própria opinião pública, reagia a tudo o que pudesse ferir as instituições básicas da sociedade, sobretudo a imagem da família e do casamento. Não havia felicidade possível fora deles: marido e mulher se transformavam em papai e mamãe. O amor conjugal era feito de procriação. Apenas. Nada de paixões infecundas, de amores romanescos, de sentimentos fora de controle. A prole legítima era o único projeto saudável. Seu cuidado, a única meta: “ – as moças, naquele tempo, eram educadas para casar e ser dona de casa…educar os filhos muito bem era responsabilidade das mulheres”, diz um dos depoimentos que li. A tríade: amor, saúde e felicidade passam a coincidir nos discursos sobre a família enquanto os “amores de sofrimento” eram identificados com doença. Paixões, levavam a crimes hediondos que enchiam as manchetes dos jornais. Contra elas – e não há novidade nisto – se constrói uma afetividade conjugal cheia de normas, cheia de regras. Sua marca: a presença de ascetismo e disciplina, características que há muito pautavam as relações entre sexos.

Criaturas opostas, biológica e psicologicamente, homens e mulheres eram vistos como “meros reflexos de suas posições físicas no amor: um procura, domina, penetra, possui; a outra atrai, abre-se, capitula, recebe”. Os mais diversos discursos sobre a família e o casal – literários, médicos, religiosos e jurídicos – decretam que é no lar, no seio da família que se estabeleciam as relações sexuais desejadas e legítimas, classificadas como decentes e higiênicas. E se o matrimônio era a etapa superior das relações amorosas, “garantidor da saúde da humanidade e da estabilidade social” como queriam alguns autores, nada melhor do que transforma-lo em necessidade para todos. Os solteiros passam então a ser perseguidos por “indisposições mortais”. As virgens eram ameaçadas com o risco de perder a tez e os atrativos físicos e os castos, com o risco de escravizarem-se “a paixões sexuais tirânicas”. -Mary del Priore.

 

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