As freiras e o pecado da “molice”

Por Luiz Mott.

1646 representa uma data capital na história das lésbicas do mundo luso-brasileiro, pois neste ano, aos 22 de março, o Conselho Geral da In­quisição de Lisboa decidiu que “o Santo Ofício não devia tomar conheci­mento dos atos sodomíticos entre mulheres”. (…)

       Com a alforria do lesbianismo, ficaram as tríbades luso-brasileiras livres do medo da fogueira, perdendo os historiadores as principais fontes documentais para o estudo do comportamento homoerótico desta minoria sexual. Melhor para nossas antepassadas, pior para os pesquisadores. A partir de então, apenas fragmentariamente conseguimos informações sobre o amor entre mulheres, que embora deixando de ser crime continuava co­mo grave pecado mortal contra o 6º mandamento da Lei de Deus: “Não pecar contra a castidade”.

       Salvo erro, a única legislação especificamente brasileira punindo as lésbicas no período colonial foi o artigo 964 das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, editadas em 1707 por ordem de D. Sebastião Monteiro da Vide, 5º Arcebispo de Salvador. Ao tratar do pecado de “molice” – termo com que os teólogos rotulavam antigamente tanto a masturbação quanto os demais atos lúbricos que não fossem a cópula anal e a fornicação -, eis como as Constituições determinavam: “É também gravíssimo o pecado de molice, por ser contra a ordem da natureza, posto que não seja tão grave como o da sodomia e bestialidade (zoofilia). Por­tanto, ordenamos que as mulheres que uma com outra cometerem este pe­cado, sendo-lhes provado, sejam degredadas por três anos para fora do Arcebispado da Bahia e em pena pecuniária, as quais penas se devem mo­derar conforme a qualidade da prova e as mais circunstâncias.”

         Não encontramos na documentação do Arquivo da Cúria de Salva­dor nenhuma referência sobre se de fato tais punições chegaram a ser apli­cadas contra mulheres que tenham praticado o pecado de molice. Ou tudo acontecia “debaixo dos panos” e às autoridades eclesiásticas não chegavam a ter conhecimento dos pecados das safistas, ou tais documentos escanda­losos e comprometedores foram destruídos para salvaguardar a tradição impoluta das famílias baianas. Nos conventos e recolhimentos de freiras de Portugal há várias referências de que as religiosas cultuavam a Venus Lés­bia, dormindo as amantes na mesma cama, chegando a ocorrer pancadarias e agressões motivadas por ciúmes de uma freira contra sua “esposa”. Aliás, freiras lésbicas preocupam a hierarquia da Igreja desde os tempos de Santo Agostinho, que já admoestava às religiosas para que se entregassem apenas ao amor espiritual umas com as outras, evitando o amor carnal, datando de 1212 a determinação conciliar proibitiva às freiras de dormi­rem juntas numa mesma cama, interdição que nem sempre foi obedecida, tanto que há registro de duas freirinhas queimadas na fogueira exatamente por praticarem o safismo, usando fálicos “instrumentos materiais” em seus devaneios eróticos. Em Portugal, no século XVI, duas religiosas do mosteiro de Santa Marta de Lisboa, Irmã Caillila de Jesus e Irmã Maria do Espírito Santo, mantiveram por seis meses erótica relação, a primeira di­zendo ter recebido numa visão celestial ordem para ser a mãe espiritual da segunda, e sentindo “o peito cheio de grandezas e bens de Deus” acabou por dar de mamar à sua filha espiritual, amamentação místico-erótica que, descoberta pelo confessor, levou as duas amantes à barras do Terrível Tri­bunal.

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      Num detalhado estudo sobre o Convento do Desterro das clarissas de Salvador, a historiadora Susan Soeiro cita vários episódios envolvendo amizades ilícitas das monjas com amantes do outro sexo, os famosos “freiráticos” já denunciados por Gregório de Matos no século XVII: nada fala, porém, sobre o lesbianismo. Censura ou inexistência de provas? No recolhimento de Macaúbas, nas Minas Gerais, na Visita episcopal de 1733­-34, denunciava-se que foram encontradas até 4 freirinhas dormindo na mesma cela, “algumas dormindo juntas com outras na mesma cama”. Se faziam ou não o roçadinho ou amamentações místicas, os documentos não chegam a revelar. No Recolhimento de Nossa Senhora do Parto, no Rio de Janeiro, encontramos uma referência a um “menage a trois”, no ano de 1758. A denunciada foi a irmã Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz, negra da nação Courana, ex-prostituta nas Minas Gerais, que foi denunciada por ter ido para a cama do confessor do Recolhimento levando consigo uma menina de 8 anos. Tal escândalo chegou aos castos ouvidos do Bispo D. Antonio do Desterro, que ordenou a expulsão da libidinosa recolhida. O recente livro norte-americano “Freiras Lésbicas” (1), com o depoimento de 50 religiosas e ex-professas que declaram-se homossexuais – algumas antes, outras durante ou depois dos votos de castidade -, apresenta interessantes informações sobre a prática do safismo nos conventos de monjas desde a Idade Média até nossos dias. O livro foi um dos maiores best-sellers nos dados Unidos em 1985.

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       Ainda para o século XVIII localizamos outra referência no Brasil, esta mais explícita, a uma lesbiana residente num recolhimento. Trata-se de Ana Joaquina, mulher desquitada do Capitão Joaquim Tomás Gomes, de Salvador. Por ordem do governador da Bahia, o Ouvidor do Crime, Dantas de Mendonça, fez uma sindicância em 1781 para saber dos costumes desta mulher, acusada que foi de práticas imorais. Informa o Ouvidor que Ana Joaquina encontrava-se enclausurada no Recolhimento da Mise­ricórdia, onde levava “vida escandalosa pelas excessivas amizades que contrai com outras mulheres do mesmo recolhimento, chegando até a meter e ocultar dentro da cela outras mulheres para o mesmo pecaminoso fim”. Aliás, a Misericórdia tinha fama antiga pelo mau procedimento de suas recolhidas, que das grades de suas janelas eram useiras em chamar os/as transeuntes para colóquios nem sempre os mais edificantes. O pare­cer do Ouvidor do Crime foi manter a lésbica enclausurada ou transferi-la para o Recolhimento de São Raimundo, onde encontravam-se as “madalenas arrependidas”, ex-prostitutas e mulheres de vida irregular. Sobre este Recolhimento, dizia o professor Vilhena, nos Últimos anos do século XVIII: “Muitas vezes os Governadores Capitães Generais se servem de São Raimundo como cadeia política em que mandam recolher algumas mulheres dissolutas da ordem, das que pareceria escandaloso mandá-las para a cadeia pública”. Certamente entre as tais dissolutas” contassem outras Anas Joaquinas da vida.

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        E assim conclui o Magistrado: “Não me parece justo que se dê liber­dade para Ana Joaquina pecar, pois ela fora não tem de que se possa ali­mentar senão do mesmo pecado, e me consta que tem quem a persuada a sair”. Quem era a lesbiana que persuadia” a recolhida a sair da Miseri­córdia lastimavelmente o documento não revela. Como Ana Joaquina, certamente muitas outras mulheres baianas e de outras Capitanias limítrofes deviam ser mantidas reclusas nos vários Recolhimentos e Conventos da Bahia a fim de reprimir-lhes os impulsos homoeróticos sempre mais visí­veis e perigosos no mundo do que dentro dos claustros. Felipa de Sousa, a primeira lésbica a ser processada e sentenciada em Salvador, em 1592, incluía em seu curriculum a passagem por um con­vento de religiosas em Portugal, de onde fora expulsa por sodomia.

[1] Curb, Rosemary & Manaban. Nancy. Freiras lésbicas: quebrando o silêncio.Rio de Janeiro, Best-seller, 1987.

 

  • Texto extraído de “O Lesbianismo no Brasil”, de Luiz Mott. Porto Alegre, Editora Mercado Aberto, 1987.

 

 

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“Freira”, de Jean-Jacques Lequeu.

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