As brasileiras e a política

As eleições se aproximam. Uma mulher está à frente nas pesquisas e ela é a atual presidente da República. Outras representantes do sexo feminino também têm tido destaque na corrida eleitoral. A despeito de qualquer preferência política, cabem algumas reflexões sobre este quadro. Engana-se quem pensa que “nunca antes” as mulheres se interessaram pela vida pública. A luta de nossas avós por representação política vem de longa data. Foi um difícil processo e muitas de suas reivindicações, hoje centenárias, tanto na área de educação quanto de saúde, ainda não foram atendidas.

Vamos começar pelo século XIX: época marcada por intensas transformações, capazes de interferir no cotidiano das pessoas, era também momento de intensas tentativas de participação das mulheres nas discussões em favor de melhorias na sociedade. Sua arma? A pena, a escrita. No momento em que emergiam movimentos sociais, como o socialismo e o sufragismo, elas não usaram apenas a voz. Mas, sobretudo, as palavras como instrumento de luta.

Uma das pioneiras foi Nísia Floresta. Nascida na pequena localidade de Papari, Rio Grande do Norte, casada contra a vontade aos treze anos, logo abandonou o marido e, em 1832, já sustentava mãe e filhos com o salário de professora. Em 1832, publicou Direitos das Mulheres e Injustiças dos Homens, opúsculo em que enfrentava os preconceitos da sociedade patriarcal, exigindo igualdade e educação para todas. Segundo ela, a situação de ignorância em que eram mantidas, era responsável pelas dificuldades que elas encontravam na vida. Submetidas a um círculo vicioso, não tendo instrução não podiam participar da vida pública. E não participando da vida pública, continuavam sem instrução. Alguns anos depois, já instalada no Rio de Janeiro, Nísia passou a realizar conferências defendendo a emancipação dos escravos, a liberdade de cultos e a federação das províncias com o sistema de governo republicano.

Na mesma época, no extremo oposto do Império, Ana de Barandas erguia bandeiras contra a Revolução Farroupilha. Advogando em favor da participação das mulheres na luta política, colocava-se contra a separação da província. E não o fazia só: Delfina Benigna da Cunha e Maria Josefa Barreto usaram versos, redondilhas e panfletos para acusar de anarquistas os partidários da separação. Atacadas pelo sexo oposto por seu envolvimento em ações políticas, eram defendidas por Ana de Barandas: “Tendo nós os mesmos atributos […] porque autoridade não haveis de querer que nós outras não façamos uso desse admirável presente que recebemos do Criador!”.

Enquanto isso, na sede da Corte, o Rio de Janeiro, a poetisa Narcisa Amália, primeira mulher a se profissionalizar como jornalista, aderia às preocupações de jovens intelectuais de sua geração. Influenciados por temas liberais como os do escritor francês Victor Hugo, eles colocavam a pena a serviço das idéias democráticas e progressistas, da modernização da nação, da elevação do nível cultural e material da população. A percepção da necessidade de educação unia as agendas femininas, de Norte a Sul: “sem a instrução popular – dizia Narcisa – a democracia jamais passará de uma dourada quimera”.

A segunda metade do século XIX assistiu também a participação de muitas de nossas avós na luta pela Abolição. Há inúmeros exemplos: Adelina, a charuteira, escrava do próprio pai, participou de inúmeros comícios abolicionistas em São Luís do Maranhão. Conhecedora dos meandros da cidade onde circulava para vender seus charutos passou a ajudar os abolicionistas passando-lhes informações e articulando a fuga de escravos. Na Bahia, Amélia Rodrigues, em artigos em O Monitor, protestava contra o envio de cativos para a Guerra do Paraguai.  Em Pernambuco, Ignês Pessoa descrevia, em poemas, a miséria, sangue e lágrimas dos afro-descendentes, enquanto Maria Amélia de Queiróz, batalhadora polêmica e conferencista renomada redigia incontáveis artigos pelo fim da “criminosa instituição”, em favor da república e da participação das mulheres nas “lutas dos homens”. Ela costumava se apresentar no Teatro de Variedades de Recife que lotava para ouvi-la falar em “cidadania plena”. Já no Ceará, Maria Tomásia Figueira de Melo presidia a sociedade abolicionista feminina Cearenses Libertadoras.

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Depois do golpe republicano, a vida urbana se acelerou e as indústrias se multiplicaram. Imigrantes trabalhavam mais de doze horas diante de máquinas, nas piores condições de salubridade. O melhor porta voz de suas dificuldades foi Patrícia Galvão, mais conhecida pelo pseudônimo Pagu. Desde cedo dedicada às letras, participou do movimento de 22, colaborando com a Revista de Antropofagia. Conheceu Luís Carlos Prestes junto a quem debitava ter “se feito ciente da verdade revolucionária”. Seu romance Parque Industrial, publicado em 1922, provocou escândalo por seus ataques a sociedade paulistana, pela revelação das atrozes condições de vida dos operários e a desmistificação da figura feminina fora do espaço doméstico. Em 1931, filiou-se ao Partido Comunista e criou o pasquim O Homem do Povo, de curta duração. A militância política absorveu-a completamente, razão pela qual foi presa várias vezes, no Brasil e no exterior. Sua inquietação política levou-a a candidatar-se, em 1950, por uma vaga de deputada estadual pelo Partido Socialista Brasileiro, sem sucesso.

As mudanças trazidas pelo novo sistema político convidaram à fundação de organizações de luta. O Partido Republicano Feminino abriu suas portas a 23 de dezembro de 1910. Na presidência, a feminista baiana Leolinda Daltro. Os objetivos eram promover a cooperação feminina para o progresso do país, combater a exploração relativa ao sexo e o mais importante: o direito ao voto. A discussão sobre o tema vinha se arrastando desde 1880. Leolinda e suas companheiras de militância, entre elas a poetisa Gilka Machado, não perdiam uma única oportunidade de promover os princípios do partido. Em novembro de 1917, levaram as ruas do centro da capital dezenas de simpatizantes do sufrágio universal.

Depois, foi a vez da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino. Lideradas pela bióloga Bertha Lutz, as sufragistas encontraram no senador Juvenal Lamartine um apoio para animar seu combate. A parceria foi duradoura, pois ela acompanhava o político em seus deslocamentos. Junto com Carmem Portinho, Bertha aproveitava para fazer discursos, distribuir panfletos e dar entrevistas. Em 1930, começou a tramitar no Senado o projeto que daria o voto às mulheres, mas com a Revolução, as atividades parlamentares foram suspensas. Depois da vitória das forças democráticas, foi nomeado um grupo de juristas encarregado de elaborar o novo código eleitoral. Entre eles estava Bertha, formada então em Direito também. A Revolução Constitucionalista atrasou mais uma vez a aprovação do projeto. Só em fevereiro de 1932, Getúlio Vargas assinou o tão esperado direito de voto. Bertha tentou ocupar cargos em vários pleitos, elegendo-se deputada federal em 1936. Sua carreira política nacional e internacional foi brilhante, ocupando sempre cargos em instituições de renome.

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No final dos anos 40, outra organização nascia: a Federação das Mulheres do Brasil, guarda-chuva para mulheres de várias tendências de esquerda com forte influência do Partido Comunista Brasileiro. As principais preocupações? Luta contra a carestia, pela paz mundial e a proteção à infância. Em 1953, como resultado desta mobilização, ocorreu a Passeata da Panela Vazia. Durante a Greve dos 300 Mil, que paralisou São Paulo, as militantes ocuparam espaços e instalaram departamentos femininos nos sindicatos. Em decorrência destas ações, nasceu a Superintendência Nacional do Abastecimento dando amplos poderes às autoridades públicas para defender os interesses da população.

Entre os anos 50 e os chamados “Anos de Chumbo”, muitas mulheres como Ana Montenegro se destacaram. Ativista política e feminista nascida em Quixeramobim, Ceará, participou da Federação das Mulheres do Brasil e do Comitê Feminino Pró-Democracia. Teve papel ativo na criação do jornal Momento Feminino, editado ao longo de dez anos, pelo movimento de mulheres comunistas. Dentro do PCB, participou da Frente Nacionalista Feminista desde meados dos anos 50, até o golpe militar de 1964. Outra figura notável da década foi Lígia Lessa Bastos, carioca com a carreira política mais duradoura da América Latina. Entre os variados mandatos que exerceu, de vereadora a deputada federal, esteve 40 anos ininterruptos na cena.

Durante o governo militar uma importante educadora se tornou a primeira ministra de Estado: Ester de Figueiredo Ferraz. Socióloga e psicóloga, docente de direito penal na Faculdade de Direito da USP, reitora da Universidade Mackenzie entre 1965 e 71, foi convidada pelo presidente João Batista Figueiredo para ocupar o cargo de Ministra da Educação e Cultura entre 1982 e 1985. Não foi a única a apoiar o regime. Em plena Guerra Fria, um movimento político mobilizou milhares de mulheres em várias cidades brasileiras: a Campanha da Mulher pela Democracia ou CAMDE. Sob o lema “Deus é a verdade. Democracia e Liberdade” e a presidência de Amélia Molina Bastos, a organização patrocinou intensa campanha nas ruas por meio de “marchas” contra o comunismo. Grupos cívicos foram criados em todo o país e um congresso internacional selou o compromisso de luta das mulheres contra os movimentos de esquerda e em favor da melhoria da educação. Do outro lado do espectro político, inúmeras mulheres ingressaram na clandestinidade, lutando contra o regime instalado: Elza Monnerat, Elizabeth Teixeira, Clara Sharf, Damaris Lucena entre outras, algumas das quais morreram em combate contra a repressão.

Durante a década de 70, houve muito entusiasmo e participação feminina nas mais diversas discussões sobre seu papel na sociedade. No Rio de Janeiro, Branca Moreira Alves,  Mariza Heilborn, Kátia Braga entre outras fundaram o Centro da Mulher Brasileira. Em São Paulo, Albertina Duarte criou com colegas o Centro de Desenvolvimento da Mulher Brasileira. No Sindicato dos Jornalistas, agitavam-se os Encontros de Mulheres de São Paulo, organizados por Raquel Moreno e Neide Abati. Clubes de Mães, Associações de Donas de Casa e movimentos populares da periferia azeitavam as lutas por melhores condições de vida. Nas universidades, Walnice Nogueira Galvão e Betty Mindlin pensavam e pesquisavam a condição feminina, enquanto a partir de 1975, Terezinha Zerbini levantava a bandeira do Movimento Feminino pela Anistia. Nas fábricas, as trabalhadoras lutavam junto aos sindicatos contra o “machismo” dos dirigentes sindicalistas e por justiça e cidadania. Delegadas se reuniram no Pacto de Unidade Intersindical de São Paulo, num evento da maior importância enquanto os congressos de mulheres metalúrgicas assim como sua participação nas greves do ABC se multiplicavam. E as trabalhadoras rurais começam a se unir e a participar das lutas sindicais e do Movimento dos Sem-Terra. O centenário da Abolição marcou por sua vez a discussão de temas como racismo, educação, trabalho e saúde entre mulheres negras. Da mesma época, data a criação de grupos como o SOMOS, voz de mulheres com diferente orientação sexual, que lutavam contra o preconceito e a violência.

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Os anos 80 foram muito importantes, pela criação de políticas específicas para mulheres. Com a redemocratização, o então presidente José Sarney enviou ao Congresso o projeto de lei criando o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher. O papel do CNDM foi fundamental durante a Constituinte de 1988, representando seus interesses. Criou-se um lobby nacional, o “lobby do batom” como ficou conhecida a atuação da bancada feminina no Congresso Nacional, destacando-se aí Heloneida Studart. A perfeita sintonia com os movimentos populares permitiu a aprovação de mais de 80% das reinvindicações encaminhadas aos congressistas na área do Direitos da Mulher.

Depois desta bela caminhada, capitaneada por mulheres corajosas e idealistas, o que temos hoje? O feminismo contemporâneo multiplicou-se em mais de mil grupos espalhados pelo país atuando em diferentes setores. Algumas organizações continuam atuantes via ONGs, rádios, universidades, projetos educativos e de saúde. Em plena democracia, não há mais obstáculos para a representação de mulheres no Congresso. Pode-se dizer que se alguém conquistou plena igualdade política, foram as brasileiras. Elas fazem campanhas e são eleitas, sem as perseguições movidas no passado como, por exemplo, a que atingiu Bertha Lutz acusada de fraude eleitoral. E a igualdade com os políticos é absoluta: elas têm isonomia no horário político eleitoral e não encontram barreiras para o financiamento de suas campanhas. Mas o que nos trazem os jornais e a mídia são informações sobre outra forma de igualdade: nossas eleitas roubam, gastam cartão corporativo e mentem como seus pares do sexo masculino. Parecem ter esquecido da agenda arduamente amadurecida durante o movimento de redemocratização do país. Apesar das conquistas na vida política, continuamos sem ações eficientes que atendam direta e majoritariamente os problemas femininos como gravidez na adolescência, aumento de creches e de programas de saúde na Terceira Idade e educação para a inserção profissional da mulher.  – Mary del Priore

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Pioneiras: Nísia Floresta e Bertha Lutz.

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