A recente canonização do jesuíta espanhol, José de Anchieta (1534-1597), está envolta em polêmica. Enquanto a Igreja católica enaltece o seu trabalho como missionário que catequizou os indígenas – sempre com amor e compreensão -, outros destacam a violência deste choque cultural entre os europeus e os nativos. Conhecido como o “apóstolo do Brasil”, Anchieta foi também um dos fundadores de São Paulo. Longe de querer entrar no aspecto religioso, acho que cabem algumas reflexões a respeito desta questão.
O jesuíta espanhol rapidamente aprendeu a língua tupi (geral) e escreveu a sua primeira gramática, sempre buscando adentrar no imaginário indígena para catequizá-lo, ensinando as verdades da fé. Conheceu os hábitos dos nativos para se aproximar deles com mais eficiência. Explorando os aspectos exteriores da religião católica, escreveu atos para serem representados pelos índios. Usou a música e o teatro para propagar a sua religião – que ele acreditava ser a verdadeira.
Para alcançar seu objetivo, o trabalho missionário da Companhia de Jesus, muitas vezes, usava de expedientes considerados hoje pouco éticos, inclusive a violência física. Ora, sob o ponto de vista moderno, a catequização dos índios promovida naquela época é inconcebível. Para nós, espectadores do século XXI, impor uma nova religião a um povo, destruir seus traços culturais – seus ritos, crenças e práticas – é realmente inaceitável. O que muitos esquecem, entretanto, é que Anchieta era um homem do século XVI. Um soldado da Contrarreforma, como todo jesuíta de então.
Naqueles tempos, catequizar era sinônimo de “salvar almas”. Alfredo Bosi, em “Dialética da Colonização”, afirma que Anchieta foi nosso primeiro intelectual militante e que era guiado por uma inegável boa-fé de apóstolo. Isto, porém, não diminuiu o lado perverso de sua missão. “Como nas cruzadas e nas guerras santas, (na colonização) a religião e a moral coletiva degradam-se rápida e violentamente a pura ferramenta do poder; e o que se ganha em eficiência tática perde-se em qualidade no processo de humanização”, diz Bosi.
Para explicar aos índios as “verdades da fé”, os jesuítas precisavam destruir seus “maus hábitos”, que eram associados ao demônio. Os alvos principais eram as práticas ligadas aos rituais mágicos, que eram ricos em beberagens, fumos, transes, danças, cantos e até antropofagia. Para isso, nos conta Bosi, “o método mais eficaz não tardou a ser descoberto: generalizar o medo, o horror, já tão vivo no índio, aos espíritos malignos, e estendê-lo a todas as entidades que se manifestassem nos transes. Enfim, demonizar toda a cerimônia que abrisse caminho para a volta aos mortos”. As cerimônias religiosas indígenas eram classificadas como atos malignos e bruxarias.
Outro aspecto que deveria ser combatido era a moral indígena, muito diferente da cristã. A poligamia e o incesto foram alvo dos ataques dos jesuítas. A raiz de todos os males seria a falta de orientação e hierarquia. Muitas vezes, era preciso usar a força para levá-los ao caminho certo. “Não estão sujeitos (os índios) a nenhum rei ou chefe e só têm alguma estima por aqueles que fizeram algum feito digno de homem forte. Por isso, frequentemente, quando os julgamos ganhos, recalcitram, porque não há quem os obrigue pela força a obedecer”, dizia o próprio Anchieta.
Enfim, nem herói, nem vilão, Anchieta foi um homem de seu tempo, que tinha uma missão e acreditava nela. Lembremos que, naquela época, religião, política e economia formavam um todo indivisível. Os aspectos econômicos da colonização não sobrepujavam os outros, portanto, a propagação da fé era tão importante quanto fortalecimento econômico ou político. Santo? Não creio. Mas, os católicos que julguem este mérito, afinal, trata-se mais de uma questão de fé que de História. – Márcia Pinna Raspanti.
José de Anchieta, canonizado dia 2 de abril de 2014.
Quando me deparo com textos como esse fico imaginando qual a origem de quem escreveu e acho que deveria ter ficado lá nas suas origens mesmo, assim talvez não tivesse escrito uma pérola dessas.
Quando me deparei com textos como esse fico imaginando qual a origem de quem escreveu e acho que deveria ter ficado lá nas suas origens mesmo, assim talvez não tivesse escrito uma pérola dessas.
Eu concordo com o final do texto, ele tinha uma mentalidade da época, não podemos julgar pois talvez se fôssemos da época pensaríamos da mesma forma. E também existe a questão da religião católica que tem o propósito de salvar almas, e para a religião o culto indígena era e ainda é algo não cristão. Enfim gente eu não vou desmerecer o trabalho dele na época e nem também idolatra-lo.
Que texto horrível… “choque cultural” kkkk os canibais, genocidas e fanáticos religiosos indígenas devem ter ficado em choque mesmo, coitadinhos… a memoria dessa Padre erudito é ótima, especialmente quando é comparada com a deles.
Ótimo texto, que nos faz refletir! Não podemos nos esquecer da excelente obra do Professor Doutor Paulo de Assunção que demonstra em seu livro “Negócios Jesuíticos” a verdadeira missão de muitos que vieram em nome da fé e da religião. A história eurocentrista que por muito tempo imperou, aos poucos sendo debatida por grandes historiadores. Parabéns!
Gostei do comentário, ponderado e sem maniqueísmos. Verdade, verdade…bem o digo: o que seria do homem sem suas contradições?
Perfeito, Márcia!
Que bom que temos historiadores para desmistificar certos personagens. É verdade, temos sim que pensar com a mentalidade da época para compreendermos – aceitar, não! – certas atitudes. Mas, ainda hoje, vemos missionários religiosos tentando – e até conseguindo – enfiar goela abaixo as suas crenças. O que é lamentável.
Concordo, Osvaldo. O historiador precisa entender o passado e suas mentalidades, o que não significa fechar os olhos para as injustiças e erros. E infelizmente até hoje vemos tentativas de catequização, que apenas destroem outras culturas. Acho que a História tem muito a ensinar. Obrigada pelo seu comentário.