Amores mulatos, amores mestiços

As nossas formas de dizer o amor impregnavam-se, no século XIX, de uma cultura mestiça e mulata. Já eram trezentos anos de intenso convívio entre brancos, negros e índios, com suas múltiplas consequências, inclusive os “barões de chocolate”: expressão que designava mestiços abastados de origem africana, agraciados com títulos de nobreza por D. Pedro II.  As modinhas do poeta afro-brasileiro Domingos Caldas Barbosa, sucesso, desde o início do século, corriam de boca em boca. Ao som do violão, vozes femininas podiam cantar:

 “Eu sei, cruel, que tu gostas

Sim, gostas de me matar,

Morro, e por dar-te mais gosto

Vou morrendo devagar…

Tenho ensinado a meus olhos

Dos segredos a lição

Sabem dizerem segredo

A dor do meu coração”

Na segunda metade do XIX, daguerreótipos e, depois, fotografias ilustram a ascensão de mestiços, então como bacharéis, médicos, engenheiros, militares, entre outras atividades. Apesar do preconceito, os antigos álbuns do Império, não é raro deparar com eles, vestidos de sobrecasaca, anel grande e vistoso no dedo, as mulheres com saias de refolhos e ar de grande senhora. O sangue negro ou índio corria nas melhores famílias e a influência africana começava com a mulata, ensinando as crianças brancas a falar com a tal “graça crioula” dos diminutivos, observada pela viajante francesa.

A presença de intelectuais negros nas letras, em prosa, verso, jornalismo e oratória era grande e se fez sentir até antes da Abolição. Exceção ou não, Francisco de Sales Torres Homem é um exemplo típico. Filho de uma quitandeira no largo do Rosário, mulata por alcunha “Você Me Mata”, foi um dos mais perfeitos estilistas românticos, além de jornalista, deputado, diretor do Banco do Brasil e ministro do Império. A presença do mulato nas cidades, sua presença nos domínios e ofícios os mais variados, sua transição do mocambo ao sobrado de azulejo, teve influência no que Roger Bastide chamou de “representações coletivas da época”. E,  entre elas, representações sobre os sentimentos. O brilho das artes e a celebridade literária, foi dentro das formas oferecidas pela cultura, um dos instrumentos prediletos e realmente possíveis, usados por negros para superar a linha de cor e para dizer, de maneira singular, as coisas do amor. Por isso mesmo, no Brasil, “mulatismo” e bacharelismo, – diz L. A Costa Pinto – foram expressões quase sinônimas.

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Segundo Roger Bastide, tanto o artista, o poeta ou o escritor mulato, quanto o branco, era capaz de se deixar influenciar pela moda erótica da época. Ambos adquiriam uma alma de pastor enamorado, faziam da bem amada a sua heroína, cantando-lhe a beleza do rosto ou dos pés. A passagem da Independência ao Império, ao mesmo tempo em que surgia o Romantismo, realiza um fenômeno de febre lírica que ultrapassa a aristocracia intelectual, infiltrando-se nas classes operárias e camponesas. Em meados do século XIX, 26,4% dos poetas são saídos de classes médias, com presença importante de mestiços.

O Romantismo é, sobretudo, o momento de eclosão da poesia afro-brasileira. Nela, homens como Laurindo José da Silva Rabelo fazem versos os mais apaixonados. Em “Suspiros e Saudades”, ele canta a interpretação romântica de sua dor. Mas, de uma dor, segundo Bastide, mestiça, pois, branca, feita de saudade à moda portuguesa. Já em Cruz e Souza, a busca subjetiva da cor branca é o tema de toda a obra poética. Quando o poeta ama, o objeto desse amor é a “mulher tudesca”, branca, “da cor nupcial da flor de laranjeira”, e loura, “com doces tons de ouro”. E quando canta o amor à sua própria esposa negra, faz dela “um sonho branco” cuja alma tem a forma “singela e branca da hóstia”. Para Tobias Barreto, o amor era um sentimento unificador: andava por onde quisesse, não se detendo nas barreiras de raça ou preconceito de cor. O sentimento fundia todos os povos numa mesma etnia: a brasileira, segundo o entusiasmo de Bastide. Tobias Barreto também imagina um tipo de mulher ideal, que simbolizaria, em sua beleza perturbadora, o duplo encanto unido da branca e da negra. “Bastos crespos, cabelos de mulata / Sendo ela aliás de pura raça ariana/ olhos de águia, mãozinhas de criança/ boca de rosa e dentes de africana/…É esta a imagem que peguei num sonho / Sonho de amor febril e delirante”. Não era o único: as modinhas mais populares, cantadas ou assoviadas, trombeteavam as qualidades físicas e amorosas das morenas e das mulatas, uma resposta, segundo Gilberto Freyre, à mania de louras pálidas, vinda com a imigração. Não cantava Castro Alves a beleza das crianças louras?

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É certo que mulatos se casavam com brancas, como foi, por exemplo, o caso de André Rebouças, Evaristo de Moraes ou de José do Patrocínio ( “Meus amores são lindos, cor de noite/ São formosa crioula, ou Tétis negra”). Mas, a não ser algumas exceções, trata-se da branca pertencendo à mesma classe social, e identificada por sua posição humilde, à afro-brasileira. Daí, segundo Bastide, o sonho da branca aristocrática, espécie de fada impossível que se recusaria à solicitação amorosa vinda de um afro-descendente, sendo preciso usar a força para possuí-la. Na última fase do romantismo, há um rompimento com a ênfase no branqueamento e Luís Gama, filho de escrava, ex-escravo e fundador da literatura de militância negra entre nós, escrevia: “Ó musa da Guiné,cor de azeviche/ Estátua de granito denegrido…/ Empresta-me o cabaço de urucungo / Ensina-me a brandir tua marimba / Inspira-me a ciência da candimba /Às vias me conduz d’alta grandeza “.

O negro – conta-nos Bastide – protestou contra a afirmação do branco de que conhecia apenas o desejo sexual, a violência das relações afetivas. Ele lutou contra o estigma de ser o estuprador em potencial, o responsável maior pelo medo dos brancos, deixando-nos as mais deliciosas canções de amor:

“Vancê me chama de pretinho

Eu sou pretinho dengoso

Pimenta do reino e preto

Mas não dicomê é gostoso

Vancê me chamou de feio

Cabelo de pichaim

Asssim mesmo eu sendo negro

As moças gostam de mim”.

O poeta mulato se apresenta como alvo do desejo da senhora branca, que para ele é como uma deusa caprichosa e amável, pela qual seria agradável languescer e morrer: “Ah, se meu sinhô morresse/ Eu tinha muita alegria/ E casando com minha senhora/Tomava conta da forria / Bravos sinhá moça/Bravos assim…”. Ou o poema de Antonio Pinho, “Quando eu vinha lá de baixo / que meu sinhô me comprou / Eu já vinha namorando / como sinhá de meu sinhô”. Ficavam mais e mais evidentes, formas mestiças, sincréticas, misturadas, enfim, – assim como nossa sociedade – de falar de amor. – Mary del Priore (“História do Amor no Brasil”).

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