Amores de engenho

No Nordeste, o calendário amoroso tinha o ponto alto na festa da Botada da cana: com procissão, fogos, missa. Essas festas campestres, conta Wanderley Pinho, eram duplamente interessantes porque não lhes faltava, tudo, ou quase tudo, o que havia em bailes e saraus da cidade – da boa música à dança e ao luxo do vestuário das damas somadas ao bucólico da paisagem. Pela manhã ouviam-se cantar as rodas dos carros, trazendo os lavradores da região. Chegava o padre. Repicava o sino na capela e após a missa, havia a benção de todo o engenho, até os canaviais eram aspergidos. Tais festas de igreja, com novenas e fogos davam ocasião para encontros e reuniões, raros na cidade.

O viajante inglês Henri Koster lembra que os jovens se encontravam também em passeios a cavalo, palestras, em casas conhecidas, onde, à noite, havia  dança e jogos de sociedade. Nas igrejas vozes femininas eram secundadas por instrumentos de sopro, violas e piano tocado por moços de boas famílias. Tal como em São Paulo, em Recife, por vezes, se tocava, para escândalo dos estrangeiros, “músicas de marcha e contradanças”, dentro mesmo do templo. Durante as festas de final de ano, moças e rapazes ficavam dispersos entre Poço de Panela, Monteiro, Caxangá, Benfica, Ponte de Uchoa e mesmo Olinda.

No olhar crítico de nosso conhecido Padre Perereca, as meninas, chegado este tempo, não cuidavam senão de vestidos em moldes modernos, mangas largas – as bujarronas – fitas, xales e lencinhos. Os banhos tinham que ser perfumados, com o conteúdo de frasquinhos, para atrair pretendentes. Os rapazes, por sua vez, cortavam os cabelos “a sagüi” ou à escocesa, apertavam-se em jaquetas e casacas.

Na Bahia, Maximiliano, príncipe da Áustria vira a gente fina da antiga capital do Brasil circulando: os homens de roupas escuras, ou em cadeirinhas ou ao trote de mulas e as damas pálidas, nas horas do por do sol, soltos os negros cabelos, debruçadas nas sacadas ou reclinadas em cadeiras de balanço, nas varandas floridas, à espera de elegantes cavalheiros. Clubes de dança e música reuniam a fina sociedade da capital baiana em festas de grande concorrência. A “Recreativa” e a “Phileuterpe” ofereciam bailes famosos.

Nunca é demais lembrar a situação de outras localidades do Nordeste: a sociedade fundamentada no patriarcalismo, separava homem e mulher, ricos e pobres, sublinha a historiadora Miridan Knox. Entre as mulheres, podia-se ser “senhora ou dona”, a casada. Ou “pipira ou cunhã”, a concubinada ou amasiada. Ser filha de fazendeiro, bem alva, ser herdeira de escravos, gados e terras era o ideal de mulher do sertão. Em região de mestiçagem, avós, preocupadas com branqueamento da família, perguntam às netas em namoro firme: “minha filha, ele é branco?”. Tão logo a menina fazia corpo de mulher, os pais começavam a se preocupar com casamento. Casar com “moço de boa família e algum recurso” era o plano. Piqueniques organizados sob árvores frondosas serviam para atrair pretendentes entre fazendeiros. Nestas ocasiões, no Piauí, por exemplo, as moças trajavam-se com vestidos especiais de saias rodadas de cassa, organza e seda estampada e grandes chapéus de palha, às vezes importados de Florença, enquanto longos cabelos até a cintura eram atados com laços de veludo e gorgorão também importados. Festas e piqueniques eram comuns em julho, nas férias de fim de ano, quando irmãos traziam amigos e colegas, estudantes de cursos de Direito do Recife e de Medicina, da Bahia. E então, o encontro diário, por dias a fio, bailes nos finais de semana, os passeios a cavalo em belas montarias, banhos de rios e açudes propiciavam os primeiros passos do namoro.

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A piauiense Amélia de Freitas, relatava o início do namoro com o jurisconsulto Clóvis Beviláqua, num destes banhos de rio. Clóvis, amigo dos seus irmãos, João Alfredo, futuro bacharel em direito e de Otávio, o futuro médico “das doenças de africanos”- todos estudantes em Recife, acabou salvando-a de um quase afogamento. Amélia casou-se com Clóvis em 5 de maio de 1883. Mas o namoro fora cercado de regras.

A filha mais velha devia casar-se primeiro, como contou a própria Amélia. Além disso, o casal pouco se encontrava, evitando os contatos sexuais antes das núpcias, numa época em que a virgindade da moça era vista como condição básica para o matrimônio. A noção de que a conquista e o galanteio tinham que partir do rapaz, a certeza de que o marido nem sempre seria o rapaz mais desejado, e sim o possível, num mercado matrimonial relativamente restrito pelos pais, impunham à mulher a condição de aceitar com resignação, o par imposto pela família.  O mesmo hábito do beliscão, herdado dos portugueses, sobrevivia no universo amoroso do sertão nordestino.

Livros de genealogia mostram o entrelaçamento de sete famílias piauienses, emaranhadas num cruzamento consanguíneo. Muitos casamentos impostos ocasionaram problemas mentais, como ocorreu com Ana Carolina Teles, em Oeiras, casada com seu primo por ordem do pai. Na família dos barões de Goicana, de Pernambuco, também a endogamia foi praticada à larga, não faltando descendentes epiléticos. Moças que se casaram sem consentimento ou benção foram excluídas das redes de sociabilidade familiar e isto era considerado grave afronta ao grupo. Moças de elite eram casadas debaixo de cuidados o mais cedo possível, pois se passasse de 25 anos, seria considerada “moça velha”, “moça que tinha dado o tiro na macaca”, ou moça que chegara ao “caritó”.

Casamento considerado “de bom gosto” era acompanhado de uma longa festança que durava vários dias. Mandava-se vender algumas vacas para a obtenção do dinheiro para a festa, a casa era caiada e se faziam alguns reparos para abrigar parentes que viriam de longe. Os músicos eram contratados para o baile e houve senhores muito ricos, como Simplício Dias da Silva que contava com uma banda de músicos escravos.  Era, então, montada uma estrutura para a realização da boda. Comadres ajudavam no aviamento das roupas, chapéus e na compra dos tecidos. A festa era motivo de conversa, de troca de idéias, nas tardes em que as senhoras sentavam para bordar, em conjunto a roupa da noiva. Esbanjava-se comida, mesmo sendo o sertão pobre e excluído da economia de exportação. Multiplicavam-se quitutes numa festa onde a ostentação devia emudecer os rivais. O prestígio de  uma casa de mostrava pela variedade de carnes de “criação” sobre a mesa  – leitoa, bacuri, gado, galinhas d’Angola, perus, capão, marrecas. Os parentes ajudavam cevando leitões que engrossariam a comezaina. Casamentos se realizavam em maio, junho e julho, meses mais frescos, de fins d’água e de muita fruta para as compotas e doces.

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Casamento da mulher pobre e da escrava, não envolvia dote, nem acerto de família, mas, ele era um valor: “O casá é bom/ Coisa mio não há/ Uma casa, dois fiinho/ Boa terra pra prantá”, reza o dito popular. Pagodes, festanças do gado, festividades religiosas eram espaços anuais quase únicos de encontros e casamentos. Segundo a tradição, matuto só casava quando tinha uma roupa domingueira, um cavalo para o começo da vida e uma modesta casa de palha. Pedir a mão da moça antes de ter estas coisas seria receber um não, na certa. Mesmo porque matuto não gosta de morar com outra família do cunhado ou da sogra. A mulher muito bonita despertava desconfiança, pois podia incentivar desejo de outros homens e consequente traição.

O outro risco, nestes grupos, era o de “cair no mundo”: Umas casaram, foram morar longe, outras caíram no mundo”, conta Sinhá-Moça sobre as escravas forras e trabalhadoras livres de seu engenho do Oiteiro. E não faltavam Iaiás que castigavam as jovens, admoestando “_ Apanha, negrinha , para teres “tremenha de gente” e mais tarde não caíres no mundo”!

Existia um alto nível de violência nas relações conjugais no sertão. Não só violência física, na forma de surras e açoites, mas a violência do abandono, do desprezo, do malquerer. Os fatores econômicos e políticos que estavam envolvidos na escolha matrimonial deixavam pouco espaço para que a afinidade sexual ou o afeto tivessem grande peso nessa decisão. Além disso, mulher casada passava a se vestir de preto, não se perfumava mais, não mais amarrava seus cabelos com laços ou fitas, não comprava vestidos novos. Sua função era ser “mulher casada” para ser vista só por seu marido. Como esposa, seu valor perante a sociedade estava diretamente ligado à “honestidade” expressa no seu recato, pelo exercício de suas funções no lar e pelos inúmeros filhos que daria ao marido. Muitas mulheres de 30 anos, presas no ambiente doméstico, sem mais poderem “passear” – “porque lugar de mulher honesta é no lar” – perdiam rapidamente os traços da beleza, deixando-se ficar obesas e descuidadas, como vários viajantes assinalaram. Mulheres abandonadas por maridos que buscaram companheiras mais jovens sempre houve em todo o mundo, mas fatores específicos do Nordeste como o desequilíbrio demográfico nas regiões interioranas, ocasionaram um mercado matrimonial desvantajoso para um número muito grande de mulheres cujos maridos deixavam o sertão para ir trabalhar nas cidades litorâneas. Homens de prestígio e de boa situação social sempre tiveram a chance de constituir mais de uma família.

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As mulheres jovens, sem bens e que não haviam conseguido casamento numa terra de estreito mercado matrimonial, encontravam no homem mais velho, mesmo casado, o amparo financeiro ou social de que precisavam. Mesmo sendo “a segunda ou terceira esposa do senhor juiz”, o poder e o prestígio dele, a ajudavam a sobreviver. Ser amásia ou cunhã de um homem importante implicava em galgar degraus, ganhar status econômico que não existiria de outra maneira. É certo que se exigia dela ser conhecedora “do seu lugar”, com comportamentos adequados e comedidos, mas ainda, assim, a pipira gozava de respeito.

Gardner acredita que a causa principal destas relações estivesse na “moralidade baixa” dos moradores do sertão; mas estes eram ideais morais europeus. A escravidão e as relações sociais nos grupos patriarcais moldaram outra realidade. Formou-se assim uma ética que legitimava os sentimentos e a sexualidade vividos em famílias não oficiais.

Apesar da variada vida social que vamos encontrar do Nordeste ao Sul, a fase em que o par devia estabelece os primeiros laços afetivos foi dada como inexistente no Brasil. Acreditava-se – o que não estava longe da verdade -, que familiares ou tutores conservavam em suas mãos as resoluções cruciais sobre a vida de qualquer jovem mulher. Sob esse regime, era difícil compreender, como declara um norte-americano, “como os cavalheiros adquirem suficiente intimidade com as moças para formar as bases do casamento”. Não havendo liberdade de eleição do futuro esposo também o namoro parecia dispensável. Uns percebiam esta lacuna como produto de restrições a que estavam sujeitas às mulheres em geral, e as solteiras, mais do que as casadas.

Há evidências de um conjunto de práticas cujas raízes já se encontravam na sociedade portuguesa do século XVIII e que aponta para formas de namoro feito de jogos furtivos com lenços, leques e chapéus. Namoro calado, mas, cheio de sinais. Foi no uso desta linguagem amorosa que jovens pernambucanos foram comparados a hábeis “amantes turcos”, levando a viajante inglesa Maria Graham a observar: “freqüentemente um namoro é mantido dessa maneira e termina em casamento sem que as partes tenham ouvido as respectivas vozes. Contudo, o hábito comum é combinarem os pais as bodas dos filhos sem levarem em conta senão a conveniência financeira”. – Mary del Priore

 

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