Ainda sobre a criança negra no Brasil…

Continuando a discussão sobre a condição das crianças negras no nosso país, vamos dar prosseguimento a algumas reflexões.Os lares monoparentais, a mestiçagem, a pobreza material e arquitetônica que traduzia-se em espaços onde misturavam-se indistintamente crianças e adultos de todas as condições; a presença de escravos, forros e libertos, a forte migração interna capaz de alterar os equilíbrios familiares; a proliferação de cortiços, no século XIX, e de favelas, no XX. Estes fatores alteravam a noção que se pudesse ter no Brasil, até bem recentemente, de privacidade tal como ela foi concebida pela Europa urbana, burguesa e iluminista. 

A noção de privacidade para escravos é ainda mais complexa de ser pensada. Ela não passa pela constituição de espaços de intimidade. Passa, sim, por seu corpo. Seu território privado é o “eu”, espécie de bolha irregular e protetora, mais ou menos desenvolvida de acordo com a sua condição na sociedade.  Na busca de interação ou em atitudes de rejeição, o território do eu permitia marcar um certo espaço ou violar o dos outros. A intimidade de mães e filhos, por exemplo, elaborava-se, não em casa, mas na rua. Nos relatos de viajantes, demonstra Kátia Q. Mattoso,crioulinhos e pardinhos acompanham suas mães nas tarefas do cotidiano. Quando muito novos para correrem pelos caminhos e vias públicas, iam arrimados nas costas de suas mães, envolvidos por panos coloridos.

Teresa da Bavieira pintou em 1888 uma negra baiana em todo o seu esplendor; negra que carregava na cabeça um imenso tabuleiro, repleto de bananas, levando nas costas um menino de mais ou menos dois anos de idade, cuja ponta do pé balança-se alegremente fora de sua cadeira de pano. A proximidade com o seio materno, com o dialeto no qual as mulheres se comunicavam, os adornos de coral e os balangandãs que usavam contra forças maléficas e até a forma como penteavam seus cabelos e o de suas crias, faziam parte deste território do eu, dividido, no aconchego do colo, entre mãe e filho. A passagem da alimentação mista para a semi-sólida operava-se com infinita precaução, não percebida, todavia, pelos viajantes estrangeiros. Ernest Abel, viajante austríaco de passagem pelo Brasil em 18124, escandalizara-se com escravas que alimentavam seus filhos ou outras crianças, “com mingau de tapioca que elas lhes levavam à boca, servindo-se para isso dos dedos”. Para se comunicar, as mães negras criaram uma linguagem  que em muito colaborou para enternecer as relações entre o mundo infantil e o mundo adulto. Reduplicando as sílabas tônicas, pronunciavam com especial encanto: dodói, cacá, pipi, bumbum, tentem, dindinho, bimbinha. Para adormecê-los  contavam-lhes estórias de negros velhos africanos, papa-figos, boitatá e cabras-cabriolas. A cultura africana inundou o imaginário infantil, com assombrações como o mão-de-cabelo, o quibungo, o xibamba, criaturas, que segundo, Gilberto Freyre, rondavam casas grandes e senzalas aterrorizando criança mal criada.

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Não poderíamos tampouco incorporar as teses de um epígono americano de Ariès, Lloyd de Mause, para quem a história dos pequenos seria apenas um catálogo de barbáries, maus tratos e horrores. No diz respeito à história do Brasil,  encontramos, de fato, passagens de terrível sofrimento e violência. Mas não só. Os testamentos feitos por jovens mães, negras livres, escravas ou forras, no século XVIII não escondem a preocupação com o destino de seus “filhinhos do coração”. Os viajantes estrangeiros não cessaram de descrever o demasiado zelo com que, numa sociedade pobre e escravista, os adultos tratavam as crianças. As cartas desesperadas de mães, mesmo as escravas analfabetas, tentando impedir que seus rebentos partissem para a guerra do Paraguai, como grumetes, sublinham a dependência e os sentimentos que estabeleciam-se, entre umas e outros:

“Prisciliana, de nação cassange, africana livre que tendo um filho de menor idade de nome Justino Pedro Barrozo, o qual se achava na corporação dos menores artesãos da Casa de Correção da Corte, o qual se acha na fortaleza da Boa Viagem por ser para ali mandado à disposição da Marinha. A suplicante , Imperial Senhor, é o único filho que tem e que lhe faz falta para o amparo na sua velhice e além disso lhe deseja dar uma educação regular…recorre à clemência de Vossa Magestade Imperial para que seu filho lhe seja entregue em atenção de ser o único que tem e em quem confia as esperanças de amparo para o futuro”. Prisciliana não era a única a cuidar e a contar com seu pequeno. As listas nominativas do período colonial trazem centenas de exemplos de mães, vivendo só, em companhia de seus filhos ao lado de quem constituíam lares e famílias, e cujo trabalho coletivo garantia a todos a sobrevivência, a união, a solidariedade. Em São Paulo, no século XVII, por exemplo, a mulata Maria de Oliveira subsistia do jornal de um filho carpinteiro e do soldo de outro, “tambor de milícias; um com vinte e outro com dez anos”. A preta Maria Monteiro, por sua vez, mantinha-se “de suas quitandas e do jornal dos filhos”, um sapateiro e outro alfaiate. Eram, sem dúvida, alianças contra a pobreza e a solidão, num mundo onde o escravismo e o preconceito racial os tratava sem piedade.  

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Nos dias de hoje, educadores e psicólogos perguntam-se, atônitos, de onde vem o excesso de mimos e a “falta de limites” da criança brasileira já  definida, segundo os resmungos de um europeu de passagem pelo Brasil em 1886, como “pior do que um mosquito hostil”. O excesso de mimos não era fortuito. Sabemos, graças aos estudos de antropólogos, que a recepção de uma criança na sociedade africana era fonte de imensa satisfação. Muitos dos ritos que cercavam o nascimento, foram transpostos para o Brasil. Ao nascer, os pequenos de origem nagô eram untados com óleos e imersos em banhos de folhas com finalidade de proteção. Entre os cassanges, toda a comunidade participava do parto, não trabalhando no campo, nem tocando em instrumentos cortantes. Tão logo a criança nascia, tinha o narizinho apertado e a cabeça massageada para adquirir uma forma, que parecia às mães de origem africana, mais estética. Os umbigos eram curados com pimenta do reino em pó. Aos finais do século XVIII, o médico francês, Jean Marie Imbert, autor de um Tratado doméstico das enfermidades dos negros, registrou, entre atônito e chocado, a bulha festiva de comadres, parteiras e amigas em torno da africana que estivesse dando a luz. Nenhum gesto era destituído do mais profundo simbolismo.

O batismo, obrigatório nas senzalas, consistia num rito de purificação e de promessa de fidelidade ao credo católico, mas significava também uma forma de dar solenidade à entrada das crianças nas estruturas familiares e sociais. No caso dos filhos de escravos e libertos, os laços estabelecidos graças ao sacramento do batismo, eram também étnicos e culturais. Os registros paroquiais de localidades como Inhaúma e Jacarepaguá, no estado do Rio de Janeiro, no início do século XIX, revelam que entre 5% e 6% dos escravos batizados, tomavam os nomes de seus padrinhos e madrinhas escravos, numa forma de ampliar sua rede de parentela. Em 1842, informam Góis e Florentino, na freguesia de Inhaúma haviam sido registrados 1,6 mil batizados. Os escravos foram padrinhos em 67% das cerimônias, os libertos em 24% e as pessoas livres em menos de 10%. Na maioria dos plantéis de escravos, 75% dos padrinhos eram escravos, demonstrando o empenho escravo em constituir redes e laços familiares.

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A amamentação durava dois anos e a dentição era acompanhada com cuidado. O primeiro dentinho era festejado com farinha e caulim, símbolo da prosperidade. O lugar mesmo dos pequenos dentro da sociedade era de ordem ontológica. A criança era uma porta entre o presente e o passado, personificado nos ancestrais. Muitas recebiam, para além de um nome cristão, aquele de um animal e de um orixá. Ao nascer, seus pais plantavam uma árvore, símbolo de seu futuro vigor e força. A passagem para o mundo adulto realizava-se através da circuncisão de meninos aos 12 ou 13 anos. No Brasil, tais ritos eram festejados nas festas de Quicumbi, nas quais, os “mometos”, circuncidados com taquaras, bailavam e dançavam antes de passar, com os convivas, a um banquete. Se morriam pequenas, as crianças negras eram carregados num tabuleiro recoberto por uma toalha de renda, e suas mães alugavam flores artificiais e coroas para cumprir o dever de enterrar condignamente seus rebentos.- Mary del Piore

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 Fotografia de “Negra com seu filho”, de Marc Ferrez, 1884, Salvador.

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