Aborto: uma longa história

Desde a Antiguidade até o advento da pílula, o aborto representou a arma de controle contraceptivo de casais legítimos, mas era, sobretudo, utilizado no quadro das relações extraconjugais. Embora não tenhamos dados sobre a frequência com que se abortava no Brasil — ao contrário da França setecentista, na qual as declarações de gravidez feitas obrigatoriamente à justiça do Estado permitiam calcular o número de abortos realizados —, esse “crime” já fora comentado nas primeiras cartas jesuíticas como um hábito corrente entre as mulheres indígenas do Brasil Colonial. Essas, segundo os padres da Companhia de Jesus, apertavam suas barrigas, carregavam peso e preparavam beberagens capazes de fazê-las “mover”, contrariando teses debatidas em concílios, sermões e cânones que não perdiam uma única oportunidade para denunciar o aborto. Condenando a alma das crianças mortas ao limbo, o aborto era um pecado contra o corpo e, sobretudo, contra Deus que, depois da queda dos anjos rebeldes, precisava repovoar o paraíso com almas batizadas.

A luta contra o aborto entrou pelo século XIX, provocando em sua passagem perplexidade e rejeição. O viajante Debret, ao retratar uma vendedora de arruda nas ruas do Rio de Janeiro, anotava: “…esta planta tomada como infusão provoca o aborto, triste reputação que aumenta sua procura”. As leis do reino de Portugal vigorando no Brasil Colônia condenavam o aborto voluntário, exigindo proceder sumário no caso de haver “mulheres infamadas de fazer mover outras” ou “médicos, cirurgiões e boticários que dão remédio para este dolo mau”. Os quadros da Igreja eram também inquiridos sobre a familiaridade que teriam com esse crime. Os processos de admissão aos seminários perguntavam diretamente se o noviço teria sido causa “de algum aborto, fazendo mover alguma mulher”. Prontuários de teologia moral condenavam violentamente a “agência, auxílio e conselho para fazer aborto depois de animado o feto”. Nos documentos coloniais encontra-se a crença herdada da Antiguidade de que o feto não estaria animado senão depois de passados 40 dias, o que deixava amplas margens para medidas abortivas levadas a termo por mulheres que não estavam de todo desarmadas diante de uma gravidez indesejada. A Igreja era sensível a essa realidade e admoestava as que procuravam medicamentos e remédios para o dito fim “depois de estar animado o feto”. Ela não deixava, tão pouco, de examinar os casos em que a mulher grávida, estando enferma, tomava remédios dos quais se seguia indiretamente aborto. Essa prática foi aplicada por meio do uso indiscriminado de sangrias e laxantes.

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Sem contar os instrumentos pontiagudos como fusos de roca, broches de ferro, colheres e canivetes, eficientes para provocar o aborto, mas também infecções mortais. Os párocos das capelanias eram instados a indagar às suas penitentes se tomavam “alguma beberagem ou mezinha para mover […] e de que meses eram prenhas quando moveram e se moveram macho ou fêmea”. O olhar penetrante da Igreja varria a intimidade das mães. arrancando-lhes até informações sobre a identidade do fruto recusado. “Bebeste alguma coisa para vos causar aborto? Moveste porventura? Apertaste a barriga com as mãos para mover? Mataste vossa criança no ventre?” E os párocos inventariavam os gestos tradicionais do aborto, os mecanismos que derivavam da atrição ou os farmacológicos, que se utilizavam da fitoterapia, sobretudo da arruda. Cabia também ao confessor convencer a mulher da importância de conservar seu fruto, da mesma forma com que deviam “sofrer com paciência as incomodidades da prenhez e as dores do parto como pena do pecado”; dizia um pregador ao qual cabia, antes do parto, “cuidar para que por sua culpa não suceda algum aborto ou parto intempestivo”.

A reflexão do confessor bem expressava a convicção da Igreja de que na maternidade residia o poder feminino de dirimir pecados. E, dentre eles, o maior de todos: o original. Causa central da expulsão do paraíso terreal, a mulher podia resgatar o gênero humano do vale de lágrimas em que bracejava, chamando a si permanente tarefa da maternidade. Nessa perspectiva, o aborto corporificava a maior monstruosidade. Além de privar o céu de anjinhos, ao “privar-se das incomodidades da prenhez” a mulher fugia às responsabilidades de salvar, no seu papel de mãe, o mundo inteiro. Junto com o horror ao aborto, a Igreja convivia ainda com outra forma de controle malthusiano; o infanticídio, ou o dito “afogamento dos filhos”, no leito conjugal. O hábito das mães deitarem-se com seus bebês e os esmagarem durante o sono estava tão disseminado no Antigo Regime que as Constituições dos bispados previam punição de penitência “a pão e água por 40 dias” para esse crime. A dita penitência devia estender-se por três anos, se a criança fosse batizada, e por cinco, se não fosse.

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Os dados capturados pelo historiador no discurso da Igreja não permitem saber quem abortava. Seriam as mães solteiras, as viúvas, as casadas, as adúlteras? Delas não há um retrato nítido. Por que abortavam? O desespero diante do filho indesejado. O pânico diante do estigma social ou da expulsão familiar parecem respostas possíveis. Mas que tipo de estigmatização poderia sofrer a mulher? O pior crime não parece ter sido o de ter filhos fora do matrimônio, como sublinhava a Igreja, mas ter matado o próprio fruto. Parece inegável que a valorização da maternidade, a eleição do corpo feminino como pagador de pecados solidificaram uma mentalidade de proteção da gravidez e exaltação da fecundidade da mulher na qual o aborto aparecia como uma mácula.

O interessante é que o preconceito contra a mulher que abortava já existia no dia a dia das comunidades. Não são poucos, em nosso folclore, os relatos de filhos mortos que retornam para queixar-se do abandono da mãe. O mais conhecido deles é o da “porca dos sete leitões”. Mito europeu e ibérico, ativo desde a Idade Média, nele a porca representa os apetites baixos da sua carnalidade sexual, bem expressa na pecha com a qual as esposas criticavam as atividades extra-conjugais dos maridos: “trata-se sempre da alma de uma mulher que pecou com o filho nascituro. Quantos forem os abortos, tantos serão os leitões”, diz o especialista Câmara Cascudo. A Igreja encontrava, portanto, respaldo para combater o aborto na rejeição à mulher que rompia o acordo com a natureza. Ao que tudo indica, a Igreja passou a reforçar a imagem da “mulher que aborta” com aquela da “mulher que vive a ligação ilegítima. Ela distinguia as primeiras por não ter um casamento protetor, no seio do qual pudessem criar de maneira cristã, daquelas outras que educavam os filhos à sombra do sagrado matrimônio.

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Ao combater o aborto, combatiam-se os chamados “amores dissolutos”, cujo desdobramento — os filhos ilegítimos -podia levar a mulher a desejar a interrupção da gravidez. O aborto passava a ser visto, depois da longa campanha da Igreja, como uma atitude que “emporcalhava” a imagem ideal que se desejava para a mulher. A “porca dos sete leitões” tornava-se na mentalidade popular a antítese da mãe ideal, casada sob a bênção do padre. Como se pode ver, o papel da Igreja, ontem, ajuda a explicar sua atitude hoje, revelando também que temas importantes para a sociedade brasileira, como o do aborto, têm de ser examinados à luz das transformações sociais. – Mary del Priore (baseado em “Histórias do Cotidiano”).

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Madona e criança, de Pompeo Batoni.

2 Comentários

  1. carol
  2. Viviane

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