A Revolta da Cachaça

O Brasil Colônia foi atravessado por episódios de descontentamento e revolta. Tais manifestações tinham dois focos de origem: um “externo” e outro “interno”. O primeiro nascia da exploração cada vez maior de Portugal sobre o Brasil. Neste caso, autoridades coloniais agiam com violência através de rigorosas práticas mercantilistas que se traduziam em arrocho fiscal, associadas a corrupção, nepotismo e prepotência. Razões não faltavam. O empobrecimento crescente de Portugal desde a perda de suas receitas na Ásia, as constantes invasões e guerras contra os holandeses ou espanhóis, assim como a presença de uma corte lisboeta cada vez mais parasitária eram boas desculpas para que a Metrópole tentasse extorquir ao máximo a Colônia. Ao longo do século XVIII, tais razões se desdobraram. O enriquecimento proveniente dos negócios coloniais se configurou como uma etapa constitutiva do capitalismo moderno, que teria no Novo Mundo uma fonte quase inesgotável de recursos.

Já o foco “interno”, em parte, incide sobre outras razões para tais rebeliões. Ele vem sendo afinado por historiadores debruçados sobre esse incrível palco de tensões que foram as Minas Gerais. Aí, as razões para motins e revoltas decorriam do fato de a voracidade fiscal se vincular a crises de abastecimento de alimentos. A extorsão fiscal gerou enormes tensões e a fome coletiva estimulou a mobilização popular. Não nos esqueçamos, tampouco, que nos sertões mineiros cresciam grupos de poderosos, armados até os dentes, que, apoiados em contingentes de escravos e capangas, eram capazes de fazer a lei com as próprias mãos. Questionavam, assim, a ordem e os impostos que lhes eram exigidos. Antes mesmo da expansão mineradora, o quadro de tensões já estava delineado. Grandes conflitos ocorreram durante o século XVII.

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Em 1660-1661, no Rio de Janeiro, sob o governo de Salvador Correia de Sá e Benevides, nomeado governador pela terceira vez, ocorreu uma das mais significativas rebeliões do período. O governador, homem rico e poderoso, tinha fama de corrupto e, quando assumiu, ordenou a cobrança de novos impostos. Mal deu as costas, partindo para São Paulo, onde deveria examinar o estado da capitania, tiveram início reuniões chefiadas por Jerônimo Barbalho Bezerra em sua propriedade, na Ponta do Bravo, em São Gonçalo. Jerônimo destacara-se na luta contra os holandeses e era filho de Luís Barbalho Bezerra, governador no período de 1643 a 1644. A finalidade era depor Sá e Benevides. Essa, que ficou conhecida como Revolta da Cachaça, teve voltas e reviravoltas. Para começar, a multidão exigiu a anulação dos impostos anteriormente cobrados; impostos que deveriam aumentar as despesas com a tropa, reforçando, portanto, o controle sobre os moradores. Em seguida, o movimento canalizou insatisfações dos produtores de cachaça, proibidos de venderem o produto por concorrer com o vinho português, uma das primeiras moedas de troca no tráfico de escravos africanos.

Novos protestos ocorreram enquanto Bezerra cruzava a baía com outros rebeldes para exigir a deposição do governador interino, Tomé Correia de Alvarenga. Apavorado, este se refugiou no mosteiro de São Bento, enquanto o povo congregado o “removia”. Recusando-se a atender à intimação, Alvarenga respondeu por escrito que não podia convir com sua própria expulsão, pedindo ainda que não “houvesse desinquietação”. Insatisfeita, a população aclamou para governador Agostinho Barbalho Bezerra, irmão de Jerônimo e muito benquisto. Agostinho, contudo, titubeou. Temia represálias e, escondido no convento franciscano de Santo Antônio, alegava não ser a pessoa indicada para o cargo. A multidão ameaçava: se Agostinho não aceitasse, havia de morrer. “Não queriam outro governador senão a ele, enquanto Sua Majestade não mandasse o contrário”. Não se sabe se Agostinho buscava conciliação com Salvador Correia de Sá e Benevides, que oficialmente continuava a ser o governador do Rio de Janeiro. Sabe-se, porém, que o último, alimentado pelas informações trazidas por mensageiros índios dos padres jesuítas, esperou habilmente o bom momento de voltar ao Rio.

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Enquanto isso não acontecia, o governo instituído pelo povo e a nova Câmara eleita se esforçavam por manter a normalidade da vida na cidade. Em 1º de janeiro de 1661, a cidade acordou sob o rufar de tambores que anunciavam a leitura dos bandos – avisos – do governador. Sá e Benevides perdoou os moradores da cidade, condenando, contudo, os cabeças do movimento: Jerônimo Barbalho, Jorge Ferreira de Bulhões, Pedro Pinheiro, as autoridades nomeadas pelos insurretos, entre outros, “todos considerados inconfidentes do real serviço”. Também revogou as medidas tributárias e perdoou Agostinho Barbalho. Pacientemente, esperou mais quatro meses para que a resistência popular se dobrasse. Em abril, com a ajuda de forças militares vindas do Reino, invadiu de surpresa a cidade e, depois de pequenos combates pelas ruas, reconquistou o poder. Arrancou do convento franciscano os rebeldes e, graças a uma junta militar irregular, condenou Jerônimo, que foi enforcado, decapitado e depois esquartejado, enquanto os demais prisioneiros eram enviados a Salvador e, de lá, para a prisão do Limoeiro, em Lisboa. Aí, os revoltosos foram ouvidos pelas autoridades portuguesas: o comércio da cachaça foi liberado e não demorou muito para Sá e Benevides ser substituído por um novo governador. – Mary del Priore

Trabalho num engenho de açúcar no Brasil colonial

 

Escravos trabalhando em uma pequena moenda de cana (Debret).

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