“A mulher precisa se valorizar mais”

Quem nunca ouviu que as mulheres “não se valorizam”? E que todos os nossos problemas são causados pelo fato de não nos darmos o devido “valor”? Geralmente, quando se fala isso, a ideia é que somos “oferecidas, vulgares e fáceis”. Mas acho que há uma certa verdade nesse discurso. Aquela história do “atirou no que viu e acertou no que não viu”. Explico, antes que me acusem de ter me tornado moralista: muitas mulheres não têm coragem de sair de um relacionamento abusivo por baixa autoestima e por terem medo de ficar sozinhas.

Há alguns anos, como jornalista, entrevistei um grupo de mulheres vítimas de violência doméstica. Elas e seus filhos estavam escondidos de seus antigos “companheiros”, em uma casa bancada por uma ONG e pelo poder público, para proteger suas vidas. Todas haviam sofrido maus tratos por anos. Surras, humilhações, ossos quebrados, hematomas, causados por ciúmes doentios ou por motivos banais. As histórias eram muito semelhantes:as vítimas só haviam resolvido abandonar tudo porque perceberam que morreriam se não o fizessem.

Uma moça, de uns 27 anos, me contou que apanhou por dez anos. Tinha tido um braço e costelas quebrados, tinha sido arrastada pelos cabelos pela rua, xingada de vagabunda em público, recebido socos, chutes, tapas. Quando o marido bateu sua cabeça na parede, causando traumatismo craniano, ela resolveu aceitar ajuda e fugir. Perguntei se ela nunca havia pensado em fazer isso antes. Ela me disse: “Muitas vezes, claro. Eu ia para a casa dos meus pais, mas ele ia atrás, ficava na porta, chorava, pedia perdão. Chegou a dormir na calçada, dizendo que só voltaria para casa comigo. Eu acreditava que as coisas mudariam, minha mãe dizia para perdoar, pois ele era um bom pai. E isso virou rotina. Mas agora chega, não quero deixar meus filhos”.

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O pior foi que, quando contei essa história a uma amiga jornalista, ela falou. “Nossa, seria difícil resistir. O cara dormiu na rua por ela!. Ele deve gostar dela, mas é descontrolado”. Isso me chocou muito. Como assim? Nada justifica a agressão. Romantizar certas situações é extremamente doentio. O episódio mostrou-me, entretanto, que a autoestima feminina pode ser muito baixa, e que muitas mulheres fazem qualquer coisa por “amor” ou para não ficarem sozinhas. E determinados homens sabem muito bem manipular esses sentimentos de inferioridade.

Antes de julgar e condenar as mulheres que aceitam relacionamentos abusivos, devemos entender que são séculos de discursos que inferiorizam o gênero feminino. A Igreja, na busca por controlar a sexualidade das pessoas, definiu muito claramente o papel da mulher “honesta”: esposa e mãe. Uma mulher era feita para procriar. E isso só poderia ocorrer dentro do casamento, obviamente. Sem uma vida sexual regrada, as moças poderiam sofrer com doenças terríveis: melancolia, histeria, ninfomania, febres e achaques. Em outras palavras: a saúde mental e física da mulher dependia do homem.

Ficar sozinha era um triste sina. Já em fins do século XIX e início do XX, ser solteira era uma vergonha.”Quanto mais idade, pior. Uma mulher de trinta anos era considerada ‘moça velha’ e, portanto, não mais ‘amável’. Não sendo capaz de inspirar um casamento, ela também não impunha respeito”, conta Mary del Priore, em “Matar para não morrer”. E ser mãe solteira, então? Ser abandonada, largada, não ter um homem para cuidar dos filhos? Perder o marido? Isso era um estigma muito forte. A mulher era vista como pública e pecadora ou como uma coitada que ninguém queria. Não era respeitada e era culpada por ter deixado o relacionamento acabar. A mulher deveria fazer de tudo para manter o casamento, inclusive aceitar traições, maus tratos, indiferença…

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Ao longo da História, fomos ensinadas que a nossa identidade depende dos homens. Sempre precisamos da proteção e do status deles para sermos reconhecidas. É claro que muitas não se conformaram com isso e quebraram as regras, sofrendo as consequências de sua rebeldia. Hoje a mulher pode ter sua independência, seu espaço e não precisa de ninguém para ter a visibilidade que merecem. Mas, vez outra, mesmo as mais fortes, são atingidas por esse discurso que nos inferioriza e oprime.

Atualmente, ainda percebemos uma forte pressão em relação às mulheres sozinhas. Solteiras, separadas, viúvas são sempre cobradas por não terem um homem a seu lado. Talvez por isso algumas tenham verdadeiro horror dessa condição e suportem as piores humilhações de um companheiro abusivo. Já ouvi muitas amigas dizendo que não terminam com o namorado, amante ou marido porque acham que não conseguiriam “arrumar outro”. Triste, não é?

Portanto, na próxima vez que alguém disser que a mulher precisa se valorizar, pense nisso. E “se dar valor”, nesse sentido, não tem nada a ver com a roupa ou a vida sexual, mas significa desafiar séculos de misoginia, machismo e manipulação.– Texto de Márcia Pinna Raspanti.

“O Banho Turco” (1862), de Jean Auguste Dominique Ingres.

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