A mandioca, o pastor e o poeta maldito

Nos últimos dias, temos percebido a uma tendência, digamos, fálica nos noticiários e discussões. Tudo começou com um atrito entre o pastor Silas Malafaia e o jornalista Ricardo Boechat. Em meio a uma discussão, Boechat proferiu uma série de acusações relativas à honestidade do religioso. Irritado, saiu-se com a frase desconcertante: “Vai procurar uma rola*!”. Imediatamente, o episódio ganhou uma repercussão imensa, com direito a memes, manifestações de apoio e repúdio, e também discussões sobre o teor “machista” da fala do jornalista.

      Nessa semana, a responsável pela polêmica foi a presidente Dilma, que, talvez empolgada pela presença de representantes de povos indígenas, resolveu saudar…a mandioca. Sim, a raiz tuberosa comestível, um importante ingrediente da culinária brasileira. Não é preciso dizer que a história repercutiu rapidamente nas redes sociais, noticiários e até na Câmara dos Deputados, originando os trocadilhos óbvios que se basearam na suposta semelhança entre a mandioca e o órgão sexual masculino. O humor inicial deu lugar a uma série de ofensas machistas e alusões à sexualidade da presidente.

      O que os dois episódios dizem sobre a nossa sociedade? Primeiro, que temos bom humor, claro. Mas também que somos machistas e moralistas. Falar das práticas e preferências sexuais de alguém ainda é uma forma de desqualificar a pessoa. No caso das mulheres, essa misoginia, no fundo, condena o fato de gostarmos de sexo. Por isso, nada mais coerente que a mais nova modalidade de vingança dos amantes desprezados ou inconformados seja a exposição pública de momentos íntimos das mulheres com quem se relacionaram. Em relação aos homens, o mais comum é acusá-los de serem homossexuais.

     Voltemos ao século XVIII, na Bahia. A poesia atribuída a Gregório de Matos era repleta de insinuações – pouco sutis – sobre o lado obscuro da sexualidade. Quando o poeta (ou poetas) queria criticar alguém, era bastante direto: os homens eram chamados de fanchonos (homossexuais); as mulheres, de putas. Observamos também que nos seus versos a sua virilidade e o seu próprio apetite sexual eram louvados. Não faltam alusões às façanhas do pênis, suas conquistas e aventuras. Padres e freiras eram também alvos preferenciais, sendo acusados de devassidão e desonestidade. Vejamos um poema dedicado a certas freiras que lhe pediram a definição de Priapo:

“Esse lampreão* com talo,

Que tudo come sem nojo

Tem pesos como relógio,

Também serve como badalo:

Tem freio como cavalo,

E como frade capelo,

É coisa engraçada vê-lo,

Ora curto, ora comprido,

Anda de peles vestido,

Curtidas já sem cabelo”.

      Ninguém estava a salvo de suas sátiras, nem as figuras públicas. A poesia de Gregório de Matos, como nos explica João Adolfo Hansen, era cruel com quem quebrasse o “decoro”, ou seja, quem não cumprisse com o seu papel naquela sociedade hierarquizada. As mulheres deveriam se puras e virtuosas; os padres e freiras, devotos; as figuras públicas e representantes da Coroa portuguesa deveriam ser honestos e dedicados. Pobres, mestiços, libertos e escravos não deveriam querer parecer de uma classe social mais elevada. Quem ameaçasse a hierarquia, merecia ser ridicularizado publicamente.

      Apesar das palavras grosseiras, da crueza em relação ao sexo e à aparência, do humor que ainda nos diverte, essa sátira era – de certa forma – conservadora, pois, buscava chamar a atenção para os fatores que abalavam a estrutura de uma sociedade idealizada. Não vamos cair no anacronismo: o poeta (poetas) era um homem do século XVIII e pensava como tal – nada mais natural. Mas, e hoje? Por que continuamos a ridicularizar as pessoas por suas supostas práticas sexuais? Por que, quando queremos ofender, ainda recorremos aos sinônimos modernos de fanchono e puta?

     Sim, concordo que existe um elemento cômico forte em mandar um indivíduo que se vangloria de ser homofóbico procurar “rola”. Ou que é quase irresistível não se divertir com o humor involuntário que nossa presidente proporcionou ao “saudar a mandioca”.  Mas, também é importante lembrarmos que estamos, sim, sendo conservadores e machistas, mesmo sem qualquer intenção de sê-lo. Fiquei bastante chocada em ler comentários de pessoas que se julgam libertárias ou progressistas ou moderninhas, dizendo que esse tipo de análise é coisa de “feminista chata” ou de gente moralista. Olha aí mais um estereótipo antigo…

Texto de Márcia Pinna Raspanti.

inferno

“Afresco do Inferno”, de Giovanni Modena.

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