A linguagem amorosa e os rituais de sedução dos escravos

Os afro-descendentes tinham seus rituais de sedução e enamoramento, e muito nos dizem os “falares africanos”. A linguista Yeda Pessoa de Castro reconstitui um diálogo de “abordagem sexual, sedução e negociação amorosa”, em língua mina-jêje, a partir de um manuscrito mineiro do século XVIII. Vale a pena ouví-lo:

“- UHÁMIHIMELAMHI. Vamos deitar-nos.

– NHIMÁDOMHÃ. Eu não vou lá.

– GUIDÁSUCAM. Tu tens amigos (machos)?

– HUMDÁSUCAM. Eu tenho amigo (macho).

– NHIMÁCÓHINHÍNUM. Eu ainda não sei dos seus negócios.

– NHITIMCAM. Eu tenho hímen.

-SÓHÁ MÁDÉNAUHE. Dê cá que eu to tirarei.

– GUIGÉROUME. Tu me queres?

– GUITIM A SITÓH. Vosmicê tem sua amiga (mulher).

– GUI HINHÓGAMPÈ GUÀSUHÉ. Tu és mais formosa do que ela (minha mulher).”

A mesma pesquisadora repertoria uma série de palavras de origem banto e ioruba com sentido amoroso sendo a mais conhecida e ainda viva em nosso vocabulário, xodó, que quer dizer, em banto, namorado, amante, paixão. Nozdo, amor e desejo, naborodô, fazer amor, caxuxa, termo afetuoso para mulher jovem, enxodozado, apaixonado, indumba, adultério, kukungola, jovem solteira que perdeu a virgindade, dengue, candongo e kandonga, bem querer, benzinho, amor, indumba, mulher sem marido, binga, homem chifrudo, huhádumi, venha me comer.

Câmara Cascudo acrescenta a esta gramática amorosa  o verbo kutenda: pensar em alguém, sentir saudades. Na dança de batuque, em que o círculo de dançarinos se reúne à frente dos assistentes, o saracotear de quadris, movimento de pés, cabeça e braços termina, diz ele, por uma “umbigada ou semba”, dada numa pessoa do sexo oposto que se escolhe. Alguém a quem se quer bem. Sobre o cafuné, conta-nos o etnógrafo, trata-se de hábito africano trazido de ancestrais angolanos: “catar alguém é um dever afetuoso e demonstração de bem querer”. Viajantes estrangeiros atestam a predileção pela catação lenta e demorada, com direito à reciprocidade. O cafuné é uma ocupação deleitosa de horas de folga, ávida de pequenas volúpias, sem maldades e limpas de intenção erótica prefigurada. “Eu só quero mulher/ que faça café/não ronque dormindo/ e dê cafuné”, cantam os antigos. Manuel Querino lembra, dentre as práticas amorosas a especificidade da magia que empregava folhas para produzir infelicidades ou para fins libidinosos, tomadas em potagens ou na forma de remédios tópicos. Graças ao feitiço ou ebó, colocado em lugar previamente escolhido, se chamava o nome da pessoa a quem se queria atingir.

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No campo da violência entre casais, a historiadora Sílvia Lara recuperou histórias de escravos que matavam senhores ou homens livres da vizinhança por “afronta que estes lhe faziam andando amancebados com suas mulheres”. Não faltavam agressões por ciúmes, uma vez que havia menos mulheres nos quilombos e nos plantéis. Inúmeros processos crimes registram agressões de forros ou libertos que reagiam às “velhacarias” de suas companheiras. Estes Otelos, não perdoavam. O caso de Miguel, Moçambique é emblemático das tensões que atravessavam os amores de então: Miguel já cumpria pena, trabalhando para o Arsenal da Marinha, quando conheceu a preta Justina que freqüentemente visitava a Ilha Grande para vender alfinetes, agulhas e outras miudezas além de encontrar-se com ele. O sentenciado explicou no interrogatório a que respondeu, que ajudava muito a dita escrava. Disse que mesmo os jornais – espécie de pagamento diário – que recebia da Marinha por seus serviços de carpinteiro, bem como o dinheiro recebido pela venda de chapéus de palha, que fazia em momentos de folga, gastava-os com Justina. Dava-lhes vestidos, saldava suas dívidas,e ainda, vez por outra, pagava os jornais que esta devia à sua senhora. Mas soubera que Justina o traía com um marinheiro “que a tinha sempre que queria”. Certa tarde, tendo sido levado ao porto, acorrentado, a um outro preso, para trabalhar, Miguel pediu ao sentinela para falar com a escrava. Discutiram. Uma testemunha só o viu puxando pelas pernas de Justina enquanto a cobria de facadas. Aos 36 anos, foi condenado às galés para sempre.

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Por certo que não era um mundo cor de rosa, este em que se movimentavam nossos avós de origem africana. O sistema era cruel. Ele separava famílias, amigos e amantes, esposa e marido. Ele multiplicava violências. Mas não só. Os arquivos demonstram, com documentos, que casais houve para contrariar a regra. Companheiros no cativeiro e no casamento, que, longe da equivocada “licenciosidade das senzalas”, cantada em prosa e verso por tantos autores, comprovam a humanidade  no interior horror.

– Mary del Priore.

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Johann Moritz Rugendas.

 

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  1. Leandro Rodrigues

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