Racismo em sala de aula?

          O relato de hoje é da professora Elaine Marcelina, do Rio de Janeiro, e nos mostra que o racismo dificulta o ensino da História da África em nossas salas de aula. Confira:

        Atualmente, sou professora universitária, tenho 41 anos e há 11 anos leciono. Tive a oportunidade de transitar pelo ensino fundamental, médio, graduação, cursos de extensão, e hoje, pós-graduação. Neste cenário, ministrei aulas na rede municipal de ensino do Rio de Janeiro, durante cinco anos, e minhas dificuldades neste período, eram para além do dinheiro, que é curto. Eu ministrava aulas para o primeiro seguimento, na época 1ª a 4ª séries primárias, no turno da noite no Programa de Jovens e Adultos (PEJA), e foi neste período, que pude compreender as mazelas que vivemos em sala de aula, e o quanto, por vezes, nos vemos sós neste oficio de ensinar, de educar. Uma das questões que mais me abalaram foi que, neste período, o Rio de Janeiro trabalhava com a proposta de aluno integrado, ou seja, alunos com distúrbios mentais comprovados ou que não tinham que ser matriculados em turmas comuns, e os professores sem preparo algum tinham que encarar este desafio. E, como sou ousada e gosto deste ofício, recebi em minha turma o aluno “X”, ele era autista e na hora de fazer a matricula a direção não queria acitar.  Eu disse que era lei. Bom, a saga não acabou por aí, depois do aluno “X” ser matriculado era uma adaptação dele no espaço escolar, no refeitório, essas coisas, e certo dia fiz uma “semana da higiene”, resolvi cortar os cabelos dos alunos, fazer escova, maquiar, para trabalhar identidade, e claro, o aluno “X” ficou agitado, mas participou, e tudo deu certo para mim, mas a direção passava e me recriminava com o olhar, como se eu tivesse matando alguém. Não conseguirei contar tudo aqui, porém a experiência foi interessante demais, e só para encerrar, quando aprovei ele para o segundo módulo do PEJA, tive que fazer vários relatórios, pois os colegas não queriam receber o aluno “X”. E lá fui eu preencher todos os relatórios, sabendo que não basta só ter boa vontade, ou amar lecionar, passamos por uma série de situações dentro de sala de aula e a falta de apoio do corpo docente e administrativo contribui muito o desestímulo do professor e do aluno.

       No Ensino Médio, da rede estadual onde lecionei por três anos, coloco três questões para refletirmos e entendermos o imaginário social, dos professores, dos alunos, da gestão escolar e do ser humano, de modo geral. Eu ministrava aulas de sociologia, por ter a formação em História. Eu tinha uma metodologia de trabalho com os alunos de utilizar a música para explicar o processo de formação da sociedade brasileira, e as origens dos três povos que formam a base de nossa sociedade (índios, negros e brancos) e a partir daí, falar da influência dessas heranças na culinária, na música, na religião e etc. E quando meus colegas me viam na sala de aula cantando com os alunos, passavam e diziam “essa macumbeira”, “vê se isso é aula”? E como nas escolas, só trabalham a História e cultura Africana, no mês de novembro, embora tenhamos a Lei 10.639/03, de ensino de Cultura e História Africana nas escolas, há doze anos.

         Ainda hoje existem problemas por conta de alguns professores, que dizem ser complicado falar dos orixás, ou dos deuses africanos. Não acho, porque se posso falar dos deuses gregos naturalmente sem causar espanto, também posso falar da cosmovisão africana, e doa a quem doer, é nossa herança, cultura desta sociedade.  E em novembro durante três anos fiz um projeto chamado “Negras Memórias: No CIEP “Y”, fazíamos uma feira com a culinária indígena, africana e portuguesa, e um desfile. Muitos professores não participavam por dizer que aquilo se tratava de macumba, e nem sabem que “macumba”, é só um instrumento. Um outro fato, que nem consigo classificar, foi no último ano que trabalhei neste mesmo CIEP. Resolvi trabalhar uma outra forma de pedagogização, um projeto de pesquisa com as turmas de 3º ano, pois disse para mim mesma, aluno meu não vai ingressar na Universidade, sem nunca ter se quer ouvido falar em projeto e assim iniciei aquele ano, cheia de gás, os alunos reclamaram, até aí nada de novo, mas minha estranheza veio quando a coordenação da escola me chamou e disse: “os alunos vieram aqui reclamar de você. Disseram que você está dando projeto e eles não vão conseguir”. Olhei para a coordenadora, quase sem acreditar, e disse: “se estou dando a matéria, sei o que estou fazendo”. Ela continuou: “mas eles não têm condições, não sabem nem escrever. Eles vão conseguir”. E quando cheguei à sala dos professores, comentei o caso, alguns colegas me perguntaram “você é louca”? Esses alunos não querem nada, não sabem ler, e etc…”.

           Este é o cenário, no qual trabalhamos. Quando dizemos assim “o sistema baliza nossos alunos por baixo”, será que é o sistema ou somos nós, que reproduzimos o que o “sistema” diz? E a essa altura, o “sistema” parece quase uma entidade, como se não fizéssemos parte dele, para o bem ou para o mal. Somos responsáveis pelo que escolhemos enquanto profissão, ou qualquer escolha da vida, é o que penso.

        Para finalizar, para alguns, ser professor universitário é a cereja do bolo, mas a saga continua, e agora num outro patamar. Sou uma mulher negra, militante do Movimento Negro Unificado, sou do Candomblé e me utilizo de minha identidade em todo e qualquer espaço. E aí é que sinto o racismo lanhar minha pele, tal qual a chicotada lanhou a carne dos meus antepassados. Há cerca de três anos ministro cursos de extensão, em faculdades, ministro palestras, mini cursos e dou aulas em um curso de pós-graduação. No primeiro ano em que trabalhei neste curso, os porteiros da faculdade me diziam para cadastrar sua digital, e certo dia resolvi fazer isso. A funcionária me perguntou: “Você é aluna de que curso?” Respondi: “sou professora da pós-graduação”. Ela olhou pra mim e disse “vai ter que trazer o papel”. Assim o fiz. Porém,entendo que quando disse ser professora, isso causou estranheza. E será por quê? Por conta desse racismo velado em que vivemos.

           Outro dia, fui até a coordenação dos professores certo dia e fui pedir um documento, o funcionário ficou parado me olhando, e só saiu do “transe” quando a outra funcionária disse “dê o papel a ela, ela é professora” Que país é este em que vivemos? O nome do curso que ministrei foi “Gênero e etnia: História das mulheres negras da escravidão a contemporaneidade”. No primeiro módulo, tive poucos alunos, somente 15; no segundo módulo, se inscreveram cerca de 35 alunos, e alguns deles me diziam “professora eu não fiz seu curso antes, porque disseram que a senhora iria falar de “macumba”. Hoje, esses alunos estão retratando em seus trabalhos de conclusão de curso a questão da mulher negra e da escravidão neste país. Uma das alunas está retratada em meu último livro, e a mãe dela também, uma senhora que este ano fará 102 anos, que viveu na roça e teve 12 filhos.

           Essas são algumas de muitas mazelas vivenciadas por nós professores em nosso cotidiano, e me alonguei um pouco porque tive a oportunidade de trabalhar nos sistemas de ensino público e privado e em todas as esferas educacionais. 

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    • Elaine Marcelina
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