A “guerra de memes” e a imagem da mulher brasileira no exterior

        A “guerra virtual” entre brasileiros e portugueses tomou conta da internet nos últimos dias. A história começou quando alguns brasileiros descobriram que uma conta portuguesa no twitter havia adaptado um meme que fez sucesso no Brasil em 2015, que brincava com a ideia de traduzir um piadinha qualquer como se fosse “Brazilian Portuguese”. Os brasileiros começaram a fazer o mesmo e começou a tal guerra de memes.

      Entretanto, o que começou como brincadeira se tornou uma troca de ofensas xenófobas e, principalmente, machistas. Brasileiros chamaram as portuguesas de “feias e bigodudas”, enquanto os lusitanos classificaram as brasileiras como prostitutas e promíscuas, com todas as variações possíveis desse tipo de xingamento. O clima pesou. O blog “Ora Pois”, produzido pela jornalista Giuliana Miranda, radicada em Lisboa, relata que muitas leitoras reclamaram do teor dos comentários.

      Tudo isso me fez lembrar de uma pesquisa que fiz há algum tempo sobre a imagem da mulher brasileira nos relatos de viajantes que estiveram por aqui, nos séculos XVIII e XIX. E esse estereótipo de mulheres “livres”, oferecidas, vaidosas e exageradas era muito presente. Os poucos elogios que aparecem nesses textos eram direcionados a sua aparência física: belos olhos negros, pele clara, cabelos brilhantes. A francesa Rose Freycinet observou que as brasileiras iam às festas religiosas e igrejas “decotadas e muito enfeitadas, como se estivessem num baile, tratando mais de se divertirem do que de rezar a Deus”, alfinetou, antes de destacar a beleza destas “morenas atraentes”.

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           Os viajantes estranhavam que as “portuguesas do Brasil” só saíssem às ruas para ir às missas ou eventos religiosos, e fossem sempre mantidas longe dos olhares de estranhos. Mesmo assim, confinadas e vigiadas, estes “ardilosos seres” encontravam mil maneiras de enganar maridos, pais e irmãos ciumentos – sempre para manter amizades escusas, preferencialmente com os estrangeiros. O francês M. De La Flotte, em 1757, contou que apesar de todas as precauções, não há cidade no mundo (no caso, o Rio de Janeiro) “onde as mulheres sejam mais livres”. Elas se escondiam atrás dos véus e roupas escuras: “é impossível distingui-las umas das outras. Assim, uma mulher, sob pretexto de ir à igreja, pode tranquilamente dirigir-se a um encontro amoroso”.

           Até o simpático hábito de se jogar flores nos visitantes ou oferecer-lhes ramalhetes era interpretado de maneira maliciosa pelos estrangeiros. James Cook, em sua primeira viagem ao Brasil em 1768, fora alertado que não havia sequer “uma única mulher honesta na cidade (Rio de Janeiro)”, informação que ele considerou generalizante. Um companheiro de navegação, porém, afirmou que não havia muito o que se elogiar nas mulheres locais, em termos de castidade. Sobre o ato de jogar flores nos visitantes, Cook prefere ficar em cima do muro “não vou me estender sobre este assunto, contento-me em dizer que é prática constante”, esquivou-se. Ele acreditava que as mulheres locais eram muito receptivas aos estrangeiros e que tinham verdadeira aversão aos seus compatriotas. “Suas maneiras são doces e afáveis, sobretudo, em relação aos estrangeiros”

          George L. Stauton, em 1792, não foi tão elegante. Ele afirmou que o dito costume das flores devia ser inocente nos tempos de outrora. “Nos dias que correm, contudo, é necessário confessar que a solicitude de muitas delas (mulheres brasileiras) salta aos olhos”. Juan Francisco Aguirre, que esteve no Rio de Janeiro em 1782, afirmou que a cidade ocupava o primeiro lugar no mundo em termos de libertinagem. “Pouco depois de amanhecer, veem-se muitas mulheres que, a pretexto de fazerem compras nas lojas e cuidarem dos seus haveres, perambulam pelas ruas convidando à perversão”. Já o poeta Evariste-Desiré Parny, que visitou a colônia em 1773, ficou encantado com a beleza “simples” das morenas brasileiras e “seus grandes e voluptuosos olhos, negros (que) revelam um caráter naturalmente inclinado para o amor”.

       Enfim, a mulheres daqueles tempos, em especial as de classe mais alta, sempre tão vigiadas e escondidas, intrigavam os visitantes estrangeiros e estimulavam sua imaginação e curiosidade. Até o fato de elas estarem sempre cobertas por capas e lenços, causava desconfiança nos europeus. Pelo que sabemos, as brasileiras da época não podiam ser rotuladas como libertinas, nem como santas: eram apenas mulheres, reprimidas por uma sociedade patriarcal e opressora, lidando, cada uma a seu modo, com o difícil cotidiano.

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       E por que essa imagem negativa persiste? Além das tradições históricas e o preconceito tão arraigado nos europeus em relação às colônias, muito devemos também ao turismo sexual e a própria imagem que era transmitida pelo país, inclusive em propagandas oficiais. Para atrair turistas, nada melhor que mostrar lindas praias, enfeitadas por corpos femininos nus; o mesmo ocorre com o Carnaval, sempre exaltado pela presença das belas mulheres e pelo clima de liberdade sexual. Enfim, a inocente e divertida “guerra de memes” acabou mostrando o lado mais preconceituoso e misógino de portugueses e brasileiros.

Texto de Márcia Pinna Raspanti. 

Referência bibliográfica:

FRANÇA, Jean Marcel. “Visões do Rio de Janeiro Colonial”. Rio de Janeiro, Ed. José Olympio, 1999.

Blog Ora Pois

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Um dos memes ofensivos às brasileiras (Imagem: Blog Ora Pois).

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  1. Sabryna Tenório

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