Em primeiro lugar, gostaria de deixar claro que o blog História Hoje não aborda questões político-partidárias. Em nenhum momento, as organizadoras, ou qualquer colaborador, utilizam esse espaço para defender ou atacar figuras públicas, governos ou partidos: nosso objetivo é discutir, por meio de ideias, os temas que afetam a nossa sociedade sob uma perspectiva histórica. Por coerência, pois, este blog sempre se posicionou firmemente em relação ao machismo e à violência contra a mulher, não poderia deixar de me manifestar sobre os adesivos que estão sendo colados nos veículos, que mostram a presidente Dilma, em uma posição constrangedora e degradante. Os tais “mimos” devem ser colocados de forma que o abastecimento de combustível remeta a uma penetração sexual. Isto seria supostamente engraçado…
Não importa se a figura feminina utilizada seja a da presidente. Fosse de uma atriz, uma cantora, uma desconhecida, da Barbie ou da Madre Teresa de Calcutá, a “brincadeira” seria ofensiva e machista em igual medida. Queremos que nossas crianças cresçam achando uma simulação de estupro engraçada? Por que as mulheres precisam ser sempre degradadas pelo viés de sua sexualidade? Não vemos esse tipo de coisa em relação aos governantes ou políticos homens, por mais que estejam com sua popularidade em baixa. Existem inúmeras formas mais eficientes de protestar, sem apelar para a misoginia mais grotesca.
Em um cenário em que, todos os dias, sabemos de novos casos de abusos sexuais, estupros, violência e assassinato de mulheres, parece-me absurdo que achemos graça ou simplesmente “deixemos passar” uma piada tão ofensiva. Esse fato é mais uma faceta do moralismo que não se cansa de controlar e sufocar a sexualidade feminina. É o mesmo padrão de pensamento daquele marido ou namorado que não aceita ser rejeitado, que mata, agride, ou se utiliza da vingança tecnológica, divulgando fotos ou vídeos íntimos de suas parceiras (inclusive montagens). Qual o objetivo? Humilhar as mulheres, rotulando-as de piranhas, mostrando sua sexualidade como algo feio, sujo e ridículo.
A sexualidade feminina sempre foi considerada perigosa. O prazer e atração que nossos corpos inspiravam, somados à capacidade de gerar filhos, proporcionavam um poder que precisava ser controlado. A Igreja logo tratou de normatizar o sexo, associando o prazer feminino ao pecado. No século XIX, a medicina se aliou à religião para vigiar a nossa intimidade. “Os estudos sobre a doença mental, monopólio dos alienistas e a criação da cadeira de Clínica psiquiátrica nos cursos da faculdade de Medicina, desde 1879, acabaram por consagrar a ética do bom e do mau comportamento sexual. Médicos importantes examinavam mulheres cujas infidelidades ou amores múltiplos se distanciavam da ordem e da higiene desejada pela ordem burguesa que se instalara nos centros urbanos”, nos conta Mary del Priore, em “Histórias Íntimas”.
Segundo a historiadora, a mulher tinha que ser naturalmente frágil, bonita, sedutora, boa mãe, submissa e doce. “As que revelassem atributos opostos seriam consideradas seres antinaturais. Partia-se do princípio que, graças à natureza feminina, o instinto materno anulava o instinto sexual e consequentemente, aquela que sentisse desejo ou prazer sexual seria inevitavelmente, anormal”, completa. Ou seja, a sexualidade fazia parte de uma série de características que definiam a mulher “boa e direita”. Agressividade, dentro e fora da alcova, era visto como desequilíbrio, sinal de histeria ou até pior, de ninfomania.
Voltemos aos dias de hoje. Já notaram que toda mulher poderosa, na vida pública ou empresarial ou mesmo cultural, sempre sofre com especulações sobre sua sexualidade? Se é casada, deve aturar as traições ou sustentar o marido. Sozinha, tem que ser sapatão, mal amada ou piranha. É como se, ainda acreditássemos, que quando a mulher não corresponde a essa imagem de mãe e esposa ideal, existe algo de errado com ela. Passadas décadas da revolução sexual, ainda temos que nos justificar e desculpar por nossa sexualidade.
Acredito que essas piadas sobre estupro, o constrangimento, a publicação de imagens íntimas, e a difamação são facetas de um mesmo todo, estimulando e respaldando a violência física, o estupro e o abuso. Todas essas práticas bebem na mesma fonte machista, misógina e violenta. Ninguém precisa gostar ou admirar a presidente para se sentir ofendido com os tais adesivos, a questão transcende preferências políticas e antipatias. Criticar e cobrar são atitudes mais que legítimas, mas apoiar tais comportamentos violentos é bem diferente.
É preciso pensar em que tipo de sociedade estamos construindo. E repito a pergunta que fiz no início do texto: Queremos que nossas crianças cresçam achando normal e engraçado uma simulação de estupro? Tenho certeza que não.
Texto de Márcia Pinna Raspanti.
“Les Demoiselles d’ Avignon”, de Pablo Picasso.
Aviltante este tipo de piada de mau gosto.Toda mulher consciente sentiu-se ultrajada com este desrespeito à figura feminina da presidenta do Brasil.
Muito bem elaborado o texto.Lamentável os que acham engraçado.
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E tem mulher “aplaudindo”, divulgando, achando graça
Eu fiquei indignada com o fato. Enfim atinge nós mulheres. Parabéns pelo texto. Gostaria de receber seus artigos.
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Gostei do texto. Mas achei um tanto exagerada a afirmaçao de que a Igreja normatizou o prazer femenino como pecado. Creio seriamente que esta afirmaçao nao vai do todo coherente com a Historia da Igreja. É verdade, como em todo sector da sociedades, alguns personagens e lideranças da dimensao humana pôde hacer se equivocado… Fenómeno humano que se repetiu tbm na Igreja, mas dizer que isto foi regra dentro dela é ir contra a realidade. Nao faz parte nem da teología e nem da praxis da Igreja esta afirmaçao. Existe Sim OS votos de castidade tanto na vida religiosa como clerical, mas é um voto que se funda na realidade de amor e entrega ao ministerio sacerdotal, mas nao tratando ao corporal e a sexualidade como pecado, caso contrario a Igreja nao teria ao matrimonio como sacramento e nem a amplia teología do corpo tao abordada por Joao Paulo II.
Olá, Rafael. Essa afirmação se refere à atuação da Igreja ao longo da História, e não aos dias atuais. Segundo Mary del Priore, em “História do Amor no Brasil”, 500 anos antes da chegada dos portugueses no nosso litoral, “teólogos fulminavam de suas cátedras contra tudo o que dissesse respeito ao corpo, recusando a noção de prazer e exaltando a virgindade. Esta ética sexual se impôs com maior ou menor rigor, dependendo de épocas e lugares por muito tempo. E ela impregnou as mentalidades. Ao associar sexualidade e pecado – o que se fazia até meados do século passado – ela impedia que amor e sexo se dessem às mãos. Exatamente em função da eficácia desta cruzada moral contra a associação entre amor e sexo, entre corpo e alma, diversos autores consideram que o amor romântico, tal como o conhecemos, é um fenômeno tardio. Ele teria surgido, apenas, durante processo de industrialização e urbanização que teve lugar na Europa do século XVIII”.
Gostei muito da página e do conteúdo. Gostaria de receber mais artigos. Obrigada!
Obrigada, Edwiges. Continue a acompanhar nosso blog, todos os dias temos novidades.
Acompanho suas publicações e as acho perfeitas!!!
E foi um excelente texto!!
Obrigada, Rita!
A sociedade condena os estupradores e perpetra a mesma prática cruel,deplorável e abominável que esses insanos utilizam para assassinar a alma e a dignidade humana.
Extremamente agressivo e desrespeitoso. Como mulher, senti-me ofendida!
Para mim é um estupro.
Marcia, gostei muito do seu artigo e devo dizer que a intolerância que estamos vivendo na política, ética e na moral brasileira é devido ao ovo de serpente deste conflito antiguado, velho e decadente, quando os fascistas e comunistas se confrontaram nos ano 30! O discurso do debate político brasileiro atual já perdeu a diplomacia e o respeito democrático. Para mim, isto é muito sério! algo estranho há de pintar por ai! Mantenha sintonizado por e-mail!
Parabéns pelo texto e pela prática de resistência ao que tem de mais repugnante nas relações de genero. E agora a ausência de uma etica politica se mistura ao falocentrismo. Uma forma de denegri o corpo feminino pela linguagem do texto ou da imagem. Uma vergonhosa forma de fazer oposição.
É verdade, Nilda. Infelizmente, muita gente, inclusive mulheres, aplaude esse tipo de violência, confundindo preferências políticas com misoginia.