A esposa ideal

As “moças de família” e as “prendas domésticas”

         Em meados do século passado, a casa e a rua continuavam a delimitar as representações sobre as mulheres: “costurar para fora” era expressão pejorativa que designava a mulher que se prostituía. Não faltava preconceito contra as que punham um fim ao matrimônio. O divórcio, segundo a Revista Feminina de abril de 1929, era “porta aberta para os que não se entendem, a verdadeira infelicidade”. Era um “desmoronar da sociedade”! A culpa? A baixa idade com que se casava. Em vez de estudar, as jovens preferiam “o encanto de fazer o enxoval, de receber as prendas, de vestir o vestido branco”. E prossegue o articulista: “O noivo é um dos rapazes com quem dançam e jogam o tênis, e muitas vezes pouco se lhes dá que seja aquele ou outro; o que lhes deslumbra é a parte fútil desse ato tão sério na vida de uma mulher. É a culpa das raparigas esta maneira de ver as coisas? Não. A culpa é das mães que não sabem educar as raparigas para sua verdadeira função na vida”.

       Sem estudo, a maior parte das jovens investia nas “prendas domésticas”. A “moça de família” manteve-se como modelo e seus limites eram bem conhecidos, embora atitudes condenáveis variassem desde cidades grandes até pequenas, em diferentes grupos e camadas sociais. O bem-estar do marido era a medida da felicidade conjugal, e esta adviria em consequência de um marido satisfeito. E, para tal bem-estar, qual era a fórmula? A mulher conquistava pelo coração e prendia pelo estômago.

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       Outro quesito: a reputação de boa esposa e de mulher ideal. Quem era esta? A que não criticava, que evitava comentários desfavoráveis, a que se vestisse sobriamente, a que limitasse passeios quando o marido estivesse ausente, a que não fosse muito vaidosa nem provocasse ciúme no marido. Era fundamental que ela cuidasse em manter boa aparência, pois se embelezar era uma obrigação: A caça já foi feita, é preciso tê-la presa ou Um homem que tem uma esposa atraente em casa esquece a mulher que admirou na rua eram ditados correntes. Jamais se deveria discutir por questões de dinheiro; aliás, o melhor era não discutir por nada. A boa companheira integrava-se às opiniões do marido, agradando-o sempre: “Acompanhe-o nas suas opiniões […] quanto mais você for gentil na arte de pensar, tanto maior será o seu espírito no conceito dele. Esteja sempre ao seu lado, cuidando dele, animando-o […] reconhecendo seus gostos e desejos”, aconselhava o Jornal das Moças em outubro de 1955. “A mulher tem uma missão a cumprir no mundo: a de completar o homem. Ele é o empreendedor, o forte, o imaginoso. Mas precisa de uma fonte de energia […] a mulher o inspira, o anima, o conforta […] a arte de ser mulher exige muita perspicácia, muita bondade. Um permanente sentido de prontidão e alerta para satisfazer às necessidades dos entes queridos”.

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      Brigas entre o casal? A razão era sempre do homem. Mas, se razões houvesse, melhor para as mulheres resignarem-se em nome da tal felicidade conjugal. A melhor maneira de fazer valer sua vontade era a esposa usar o “jeitinho” – assim, o marido cedia, sem o saber. E, ainda mais importante, sem zangar-se. Nada de enfrentamentos, conversa entre iguais ou franqueza excessiva. Se quisesse comprar um vestido, realizar uma viagem ou recuperar o marido depois de um affair extraconjugal, que usasse o jeitinho.  Nada de ser “exigente ou dominadora”; o melhor era sempre colocar o marido em primeiro lugar, agindo de maneira “essencialmente feminina”. O “temperamento poligâmico” dos homens justificava tudo: “mantenha-se no seu lugar, evitando a todo o custo cenas desagradáveis que só servirão para exacerbar a paixão de seu marido pela outra […] esforce-se para não sucumbir moralmente, levando tanto quanto possível uma vida normal, sem descuidar do aspecto físico”.

      No casamento, a afinidade sexual era um fator menos importante no ideal de felicidade, mesmo porque a mulher não tinha nem deveria ter conhecimentos sobre a matéria. Casais iam para cama de camisola e pijama, e luz apagada. Revistas femininas ainda usavam eufemismos para tratar da questão: “ajustamento sexual para união feliz”.

      Marcado pela eleição direta e o suicídio de Getúlio Vargas, entre 1950 e 1954, o Brasil viveu um período de ascensão da classe média. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, o país assistiu, otimista e esperançoso, ao crescimento urbano e à industrialização sem precedentes, que conduziram ao aumento das possibilidades educacionais e profissionais para as mulheres.

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       Mas as mudanças não tinham atingido as mentalidades. Distinções entre papéis femininos e masculinos continuavam nítidas; a moral sexual diferenciada permanecia forte; e o trabalho da mulher, ainda que cada vez mais comum, era cercado de preconceitos e visto como subsidiário ao trabalho do “chefe da casa”. Na prática, a moralidade favorecia as experiências sexuais masculinas, enquanto procurava restringir a sexualidade feminina aos parâmetros do casamento convencional. O “temperamento poligâmico do homem justificava sua necessidade de liberdade”! Importante para a esposa: manter-se sempre no mesmo lugar, pois, segundo as conselheiras sentimentais, o marido “sempre volta”…

  • Texto de Mary del Priore.

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Anúncios de produtos para a dona de casa nos anos 50 retratam a mulher ideal.

 

 

 

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  1. FERNANDO SOUZA BEZERRA

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