Conheça, em primeira mão, um trecho do novo livro de Mary del Priore, “Do outro lado: a história do sobrenatural e do espiritismo”, da Editora Planeta.
Na época em que se publicaram os primeiros tratados sobre os espíritos, sexualidade e morte se aproximaram. Na pintura, a morte arreba- tava donzelas com carinhos sensuais. Na escultura, belíssimos corpos femininos convidavam os passantes a dormir com eles… para sempre. O teatro multiplicou cenas em cemitérios e túmulos. Contavam-se histórias sobre monges que copulavam com belas jovens mortas. A então chamada “galanteria” invadiu o além.
Outro tema era o da morbidez, definida como o gosto mais ou menos sinistro pelo espetáculo físico da morte. O corpo morto e nu se tornou objeto de curiosidade científica e de prazer mórbido. Ciência e arte se deram as mãos. O cadáver virou personagem de lições de anatomia na vida real e na pintura. As cores de sua decomposição – verde e cinza – iriam inspirar pintores famosos. Nos túmulos, belas mulheres nuas com vestes transparentes passaram a substituir a tradicional imagem da caveira comida por vermes ou de anjos com os olhos virados para o céu. Agora, não se viam mais esqueletos, mas seios e nádegas suavemente cobertos. Nos cemitérios, lustres e enfeites eram compostos com pequenos ossos.
E quem se interessou pelo assunto? Os intelectuais e estudantes. A boêmia literária, que nasceu graças ao surgimento das faculdades de Direito em São Paulo e Recife, animou os estudantes. Eles viviam livremente em repúblicas, longe da família e mergulhados em mui- ta literatura romântica. O poeta e lorde Byron era a grande inspiração. A tradução de seu poema Lara veio na pena de Tibúrcio António Craveiro, que viveu na corte entre 1825 e 1843. Por trás da aparência respeitável de um professor do Colégio Pedro II, se dissimulava uma vida de orgias e bizarrices. Sua casa era decorada com aparelhos de tortura, múmias e gravuras macabras. As paredes, borrifadas de sangue. A iluminação era garantida por velas pretas e vermelhas, como as que os condenados do Santo Ofício empunhavam a caminho da fogueira. Ele escrevia sobre uma lousa de mármore negro que, diziam, fora retirada da sepultura de uma donzela.
Outro byroniano foi o conde Tierry von Hogendorp, ex-general das tropas napoleônicas que se refugiou em Cosme Velho ao pé do Corcovado, no Rio de Janeiro. Dormia num quarto de paredes negras, com caveiras e tíbias cruzadas, esqueletos em branco representando a dança macabra: aquela em que a morte puxava pela mão um cordão de condenados. Sua cama era um ataúde.
Em 1845, em São Paulo, estudantes criaram a Sociedade Epicureia enquanto, no Recife, nascia a Filopança. Ambas promoviam orgias de inspiração byroniana. Na primeira, pontificavam Bernardo Guimarães e Álvares de Azevedo. Nas farras realizadas no bairro paulistano da Chácara dos Ingleses – não à toa, Byron era nascido em Londres –, copiavam-se os personagens satânicos do poeta. Paredes cobertas de tapetes negros e decoradas com emblemas fúnebres e camas colocadas em catafalcos, entre círios, recebiam prostitutas conhecidas na praça, como Ana Bela, Tudinha do Inferno ou Marocas Peido Roxo.
Certa eleição de uma “Rainha dos Mortos”, em plena epidemia de febre amarela que grassava na cidade, terminou mal. Os estudantes resolveram desafiar a dama de branco e percorreram os cemitérios se divertindo em saltar sobre tumbas ou violá-las. Resolveram também ir buscar uma prostituta para encarnar a morte. A escolhida foi enfiada aos gritos de pavor num caixão e levada ao som de cantochões para o cemitério. Lá chegando, um estudante, cujo apelido era Satã, abriu o ataúde para possuí-la conforme os rituais macabros. Um grito e um susto: “Morta. Está morta!”. A mulher morrera de terror. Abriu-se um inquérito, nunca solucionado, pois envolvia filhos de famílias influentes. – Mary del Priore.