Trabalho infantil: castigos e obrigações

A prática do trabalho infantil no Brasil é muito antiga, presente já nas primeiras iniciativas de povoamento das nossas terras, no início do século XVI. Nessa época, jovens grumetes e pajens chegavam com as embarcações portuguesas na condição de trabalhadores. As tarefas eram árduas; os castigos e a má alimentação eram comuns.Geralmente eram crianças pobres raptadas em Portugal ou oferecidas pelos próprios pais, que não tinham condições de criá-las. O trabalho precoce era amplamente aceito pela sociedade. Os jesuítas acreditavam no labor e na aplicação de castigos, como forma de educação. A escravidão foi outro fator que consolidou ainda mais a exploração das crianças – problema que permanece até os dias de hoje.

Em Sabará, 1762, Vitória do Nascimento, preta forra, mãe solteira, além de possuir crianças escravas, criava uma “enjeitada”. Viviam todos de costurar para fora. Nas inúmeras vendas que se espalhavam por pequenas ou grandes aglomerações, não era de estranhar encontrar crianças fazendo pequenos serviços. Os mesmos, aliás, que se executavam em toda parte. Com o adestramento completado entre nove e doze anos, qualquer menino ou menina participava às tarefas cotidianas de limpar, descascar, cozinhar, lavar, alimentar os animais domésticos, remendar roupas, trabalhar madeira, pastorear, estrumar a plantação, regar a horta, pajear crianças menores da própria casa ou dos vizinhos, levar recados ou carregar mercadoria. Como bem diz um memorialista, era o dia inteiro: “Joãozinho vai buscar isto, Joãozinho vai buscar aquilo!”.

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Alguns, inclusive, já teriam se iniciado em variados ofícios. Escravos ou livres pobres podiam ser aprendizes de sapateiros, costureiras, torneiros, carapinas, jornaleiros. Vários deles exerciam atividades domésticas, complementares às realizadas por suas mães.Filhos de doceiras descascavam amendoim, coletavam ovos, colhiam frutas, transportavam feixes de cana na cabeça. Filhos de vendedoras de tabuleiro portavam tripés, oferecendo, aos gritos, biscoitos de goma, sequilhos e broa. Outras crianças vendiam os produtos feitos em casa por suas genitoras, avós  ou senhoras: velas de carnaúba, canjica, comida de angu, rendas, flores de papel.

A tradição musical da região das Gerais incentivava a participação de crianças como pequenos músicos e cantores – houve mesmo sopraninos – nas festas religiosas, tão comuns nestes tempos. Conta-nos Julita Scarano que “donos de escravos recebiam pagamentos por cativos “muleques” que participassem de bandas ou de grupos profissionais”. E a música podia ser um ótimo ganha-pão. Em caso extremo, os pequenos mendigavam, como ocorreu com os filhos de certo Antônio da Silveira, em Ouro Preto, 1753: “Muitas vezes estão a andar as crianças da dita casa em algumas casas, alguma coisa para se comer em casa…”, revela um documento.

Muito deste precoce trabalho infantil era cadenciado pelo sofrimento. Entre os filhos de cativos, pequenas humilhações, castigos físicos e outros agravos marcavam a iniciação compulsória ao trabalho. Mas não só entre escravos. A punição física não era nenhuma novidade no período colonial. Introduzida, no século XVI, pelos padres jesuítas, para horror dos indígenas que desconheciam o ato de bater em miúdos, a correção era vista como uma forma de amor. O “muito mimo” devia ser repudiado. O amor materno ou paterno devia se inspirar naquele divino no qual Deus ensinava que amar “é castigar e dar trabalhos nesta vida”, como recomendava José de Anchieta.

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A partir da segunda metade do século XVIII, com o estabelecimento das Aulas Régias, a palmatória comia solta: “nem a falta de correção os deixe esquecer o respeito que devem conservar a quem os ensina”, cita um documento de época. Apesar de tapas, chicotadas e beliscões que aparecem, discretamente, na documentação, o labor podia ser uma forma de lazer. No último quartel do século XIX, para ajudar a mãe empobrecida, a menina Helena Morley lavava e batia nas pedras a roupa de casa. Enquanto as peças secavam ao sol, banhava-se alegremente nas águas do rio que cortava Diamantina. Enquanto isso, seu irmão, igualmente jovem, caçava pintassilgos e curiós, além de pescar lambaris que, vendidos na cidade, melhoravam a renda familiar.

– Mary del Priore e Márcia Pinna Raspanti

sapateiro

 

Trabalho e castigo: rotina na vida dos “miúdos”. (Ilustração de Debret).

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  1. Francy Oliveira
  2. Wallace
  3. Eva de Jesus Silva Gonçalves

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